Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Espiados e indignados

Vamos fingir que nos sentimos surpresos e indignados. Vamos à ONU com um protesto contra a espionagem com que o governo dos Estados Unidos invadiu mensagens eletrônicas no Brasil. Vamos cobrar do governo americano explicações sobre a central de espionagem instalada em Brasília pelo combinado CIA-NSA.

Faz parte da boa educação cívica mostrar-se surpreso e indignado. Tal como os franceses do presidente François Hollande, pouco antes de ele se sujeitar aos EUA e proibir o sobrevoo da França pelo avião em que supunham estar Edward Snowden, o revelador das espionagens americanas naquele, no nosso e em numerosos outros países.

Cumprido o ritual da surpresa e da indignação, podemos reconhecer que estamos entre os países de maior hospitalidade, senão a maior de todas, a agentes de informação, de subversão antidemocrática e de espionagem dos EUA. Qualidade nacional de que há provas sem conta. Mas, para ficar só em exemplos poucos e notórios, lembremos que o golpe de 1964 foi articulado em três frentes –a militar, a empresarial e a política.

A primeira foi montada pelo adido militar da embaixada dos EUA, general Vernon Walters, especialista em golpes mandado ao Brasil para mais um.

A segunda foi executada pelo próprio embaixador Lincoln Gordon, junto ao grande empresariado e a meios de comunicação. E a terceira ficou a cargo de uma entidade da CIA chamada Ibad, montada e dirigida por um tal Ivan Hasslocher, deslocado para a Suíça logo depois do golpe.

Antes disso, outro embaixador americano, Adolf Berle Jr., orientou, com sua equipe, uma conspiração militar para derrubada de Getúlio.

Repórteres americanos como John Gerassi e ex-agentes da CIA como Phillip Agee, entre muitos outros, publicaram artigos, reportagens e livros sobre a atividade de agentes na América Latina e, em particular, no Brasil. Foram muito pouco publicados aqui.

Não se esperariam atitudes, contra essa liberdade de invasão da CIA, por parte dos seus aliados-beneficiários brasileiros, fossem ainda conspiradores ou já governo. Mesmo os alvos da ação, porém, jamais usaram dos seus poderes legais para contê-la. Todo o governo Jango sabia das atividades de Gordon e de Walters. Em Pernambuco e em Goiás foram identificados agentes insuflando lavradores. O governo nada fez. Desde sempre consta da legislação brasileira que os militares são responsáveis pela soberania nacional. Nenhum dos seus chefes se moveu contra as violações praticadas pelos americanos.

Mais recentemente, a criação do Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia) foi entregue à Raytheon, empresa que presta serviços ao Departamento de Defesa (nome do departamento que superintende o planejamento e a execução dos ataques militares e invasões de países pelos EUA). A concorrência foi tão limpa, que a precedeu até a invasão dos escritórios da então Thomson no Rio, multinacional francesa que era a mais provável vencedora e teve todos os seus estudos e projetos roubados.

Declarada “vencedora” a Raytheon, Fernando Henrique telefonou ao presidente Bill Clinton para informá-lo a respeito. Depois explicaria o resultado e o telefonema: “O Clinton pediu pela Raytheon…”.

Desde então, todos os dados sobre espaço aéreo, solo e subsolo da Amazônia são transmitidos, em rede e equipamentos criados pela Raytheon, para a central do Sivam. Se você quiser, pode acreditar que a transmissão termina aí.

Os espiões e agentes de americanos são íntimos nossos. Mas cumpramos o ritual de fingir-nos surpresos e indignados com a espionagem agora revelada.

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Janio de Freitas é colunista da Folha de S.Paulo