A liberdade de expressão e o direito à privacidade estão no ringue, em corners opostos, como se um só existisse se o outro fosse aniquilado. Ao escrever que Roberto Carlos tomou três copos de uísque antes de criar a letra de uma canção, teria o biógrafo praticado invasão de privacidade por ter exposto a vida íntima do cantor? Ou estaria assegurado sua liberdade de expressão para citar que o artista fez um de seus grandes sucessos sob efeito etílico? A informação, extraída de uma intimidade, não se tornaria relevante quando refletida diretamente na obra de um artista? O choque entre dois direitos constitucionais entrou no foco dos deputados federais. Em suas mãos está um projeto que pode mudar a lei que rege a publicação dos livros que contam a história de um país.
A Lei das Biografias, como é hoje, dá à personalidade biografada, ou a seus herdeiros, o poder de vetar um livro sobre sua vida antes mesmo que ele seja publicado. Se preferir ler depois e não gostar da forma como foi retratado, basta dizer que não aprova. Roberto Carlos se tornou estandarte da questão quando, em 2009, entrou na Justiça para retirar das lojas a biografia Roberto Carlos em Detalhes, feita sem o seu consentimento pelo pesquisador Paulo Cesar de Araújo. Mais recentemente, tentou fazer o mesmo ao ver seu nome citado em um livro acadêmico sobre a Jovem Guarda – um tiro no pé que fez seus advogados jogarem o caso no esquecimento quando perceberam a falha.
O ‘efeito Roberto Carlos’ nas editoras foi imediato. Os departamentos jurídicos das companhias passaram a ler cada linha de seus próximos lançamentos com lupa, examinando trechos que deveriam ser extraídos para se evitar processos. “O Brasil é o único país com regime político democrático que só permite biografias chapa branca. Isto é uma gritante anomalia. Não só contraria a nossa Constituição como empobrece o país, consagra a censura prévia, impede que os brasileiros tenham acesso à sua história de forma livre e plena. O Brasil precisa se livrar deste entulho antidemocrático”, diz Roberto Feith, vice-presidente do Sindicado Nacional dos Editores de Livros.
O direito à indenização
Um projeto de lei do deputado federal Newton Lima (PT-SP) quer derrubar a autorização prévia das obras. Depois de passar com votação unânime pela Comissão de Educação e Cultura da Casa e por votação quase unânime, não fosse uma abstenção, pela Comissão de Constituição e Justiça, quando já seguia para a votação no Senado e, enfim, para as mãos da presidente Dilma, 74 deputados federais entraram com um recurso para que o projeto voltasse à Câmara, onde será agora, algum dia, debatido em plenário. No entender de Newton Lima, uma estratégia para enterrar as mudanças que ele propõe, encampada por gente não interessada em dar mais transparência às biografias. “Ao fazer isso, eles enterraram as mudanças. Há uma fila com mais de 1.500 projetos a serem votados. É praticamente impossível que o presidente da Casa coloque este, que a princípio não tem mobilização social, em discussão antes que termine seu prazo de validade (dezembro)”, diz Lima. Para não morrer na praia, ele tenta fazer com que ao menos metade dos 74 deputados mude de lado. Até agora, já conseguiu convencer cinco. O Estado teve acesso à lista dos políticos que laçaram o projeto de volta à Câmara (os nomes estão no site estadao.com.br). Dentre eles, aparecem Paulo Maluf (PP-SP), Jair Bolsonaro (PP-RJ), Anthony Garotinho (PR-RJ), Ronaldo Caiado (DEM-GO) e Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP).
“Foi justamente por ser tão polêmico que assinei para que este projeto voltasse ao plenário”, diz Faria de Sá. “Se saísse uma biografia sobre minha pessoa e fosse verdadeira, não teria problema. Mas, e se viesse com mentiras? O estrago seria irrecuperável”, diz o político.
O melhor embate sobre o tema aconteceu entre os deputados Newton Lima e Marcos Rogério (PDT-RO), que lidera os políticos reticentes à aprovação, durante um programa na TV Câmara. Rogério evocou o artigo 5º da Constituição, que cita como bens invioláveis “a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas.” Quase certo, lembrou Lima, se Rogério não tivesse suprimido o restante do artigo: “… assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. O detalhe no complemente da frase, no entender de Lima, muda tudo. “Se um biógrafo coloca informações falsas, que afetem a honra de um artista, ele tem o direito à indenização.”
Livre expressão e mais transparência
Ao ter de novo a palavra, Rogério afirmou que indenização “minimiza os efeitos, mas não cicatriza uma ferida”. “Uma ofensa não pode ser paga.” Só o Brasil, segundo Lima, tem uma lei para biografias que pratica censura prévia. “As celebridades também têm o direito à privacidade reduzido. Isso porque, na condição de artistas, políticos ou jogadores de futebol, eles vivem de sua publicidade e, assim, abrem mão de parte de sua privacidade.” Ele reforça sua tese citando um grande número de biografias lançadas em outros países. “Bill Clinton: 60 biografias; Barack Obama: 150; Evita Perón: 60. É assim que o mundo pensa.”
Nem todo o mundo. Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, conhecido como um dos nomes mais requisitados em Brasília, já chamado de “o advogado dos poderosos”, tem Roberto Carlos como um de seus clientes. Seu entendimento sobre o tema é, primeiro, de que ele tem de ser melhor debatido. E, segundo, de que, em meio a pesquisadores sérios, aproveitadores podem se dar bem a partir do dia em que a porteira for aberta: “Eu não gostaria que fizessem uma biografia minha para ganharem dinheiro com o meu nome”, diz ele, em um discurso muito parecido com o do próprio Roberto, contrário à mudança da lei por temer que muita gente passe a lucrar usando seu nome.
Enquanto Newton Lima peregrina pela Câmara em busca de apoio para ver seu projeto seguir adiante, Roberto Feith, do Sindicato dos Editores, espera por uma votação no Supremo Tribunal Federal relativa a uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin). É uma outra frente que procura modificar o artigo 20 do Código Civil, outro aliado dos opositores às mudanças quando diz que “a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”. Seu entendimento é de que tal artigo colide em linha reta com a liberdade de expressão garantida pela carta máxima da nação, que é a Constituição Federal. “Nestes dias em que vemos milhares de brasileiros exercitando seu direito de livre expressão, pedindo mais transparência no trato da coisa pública”, diz Feith.
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Três casos
>> Garrincha
Depois de lançar Estrela Solitária, em 1996, o biógrafo Ruy Castro foi processado pelas filhas do jogador, que consideraram ofensivo o fato de Ruy fazer menções ao tamanho dos órgãos genitais do biografado. A última decisão da Justiça foi favorável ao autor.
>> Ronaldo Caiado
O hoje deputado federal entrou na Justiça contra o biógrafo Fernando Morais, que disse no livro Na Toca dos Leões que o político teria sugerido aos diretores da agência W/Brasil, durante a campanha presidencial de 1989, que a solução para reduzir a população nordestina seria colocar esterilizante na água.
>> Roberto Carlos
Sem nenhum motivo de conteúdo definido, Roberto entrou na Justiça contra o biógrafo Paulo Cesar de Araújo por não gostar de ver um livro sobre sua vida nas livrarias. Os advogados de Roberto fizeram acordo com a editora Planeta e conseguiram retirar a obra das lojas.
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Julio Maria, do Estado de S.Paulo