A detenção do brasileiro David Miranda no Aeroporto de Heathrow, em Londres, no domingo, dá o pior sinal possível para quem preza a liberdade de imprensa. Namorado do jornalista americano (também advogado constitucionalista) Glenn Greenwald, com quem vive no Rio de Janeiro, David permaneceu por quase nove horas em poder da Polícia Metropolitana de Londres. Pesava sobre ele a suspeita de transportar informações roubadas, que estaria trazendo de Berlim. Entre outras humilhações, Miranda teve de entregar seu equipamento para averiguações dos policiais.
Além da prepotência de que se revestiu, a medida também chamou a atenção da opinião pública pela duração. O brasileiro ficou detido por oito horas e 55 minutos, exatamente. A imensa maioria das operações com base na mesma lei de combate ao terrorismo (sancionada em 2000) não costuma durar mais que uma hora. Logo na segunda-feira o Financial Times se manifestou, em editorial, afirmando que, embora seja compreensível e legítimo que o Reino Unido aja para se proteger contra atos terroristas, as bases legais para o tratamento hostil dispensado a Miranda são, no mínimo, frágeis.
A reação do Guardian, o diário britânico para o qual Glenn Greenwald trabalha, seguiu a mesma linha. Na mesma segunda, dia 19, o jornal começou seu editorial dizendo que “a detenção de Mr. Miranda contraria o princípio do benefício da dúvida”, um valor central nas democracias liberais. Para o Guardian, as leis antiterror conferem poderes imensos ao Estado e, por isso mesmo, esses poderes não devem ser empregados de modo desproporcional, como claramente ocorreu com David Miranda, sobre quem não pesa a mínima suspeita de ligações com organizações terroristas. “Esse caso indica que o Estado está agindo como se todos nós fôssemos idiotas”, conclui o editorial, caracterizando o “lastimável episódio” como “intimidação aberta (harassment) contra o jornalismo independente e contra cidadãos livres”.
Por certo, o combate ao terror é necessário. Isso não está em questão. Estados democráticos devem dispor (e dispõem) de serviços de inteligência e de forças policiais para se proteger – e a seus cidadãos – contra ataques e atentados. A detenção do jovem brasileiro (Miranda tem 28 anos de idade) em Heathrow, no entanto, foi além do que seria razoável para um procedimento preventivo. Muito além. Ele assinala que a liberdade de imprensa e as garantias individuais são valores cujas cores vêm sendo esmaecidas tanto no Reino Unido como em países centrais.
Algo de podre
O incidente no aeroporto londrino não pode ser visto como fato isolado ou, como os juristas gostam de dizer, “um ponto fora da curva”. Para começar, as autoridades britânicas mantiveram as autoridades americanas informadas da operação o tempo todo. É bom não esquecer que Glenn Greenwald foi quem revelou ao mundo, pelas páginas do Guardian, as denúncias de Edward Snowden de que, segundo ele, o governo americano mantém programas de espionagem que vasculham correspondências eletrônicas de cidadãos de vários países, tudo em nome de combater o terror. O cerco à liberdade no portão inglês é parte integrante de um movimento amplo e profundo das potências ocidentais para, a pretexto de interceptar e neutralizar agentes terroristas, atropelar a privacidade de cidadãos ingleses, americanos e… brasileiros, entre tantos outros.
Num mundo em que a atividade da imprensa depende, cada vez mais, da cooperação internacional entre jornalistas independentes, qualquer restrição abusiva ao livre trânsito de informação entre cidadãos livres termina por violar o direito à informação de todos. Atenção, leitor: a brutalidade cometida em Heathrow pode violar não apenas a integridade moral de David Miranda, mas também o direito que você tem à informação jornalística.
Quando lembramos que a Inglaterra foi a pátria da liberdade de imprensa, o cenário ganha sombras ainda mais soturnas. Foi lá que John Milton fez circular sua célebre Areopagítica, em 1644, lançando a tese de que ninguém deveria depender de autorização do Estado para publicar o que quer que fosse. Cerca de 20 anos depois, William Blackstone, em Comentários sobre as Leis da Inglaterra, reafirmou o mesmo princípio, que iria virar cláusula pétrea nas democracias do mundo inteiro.
Hoje os tempos são menos arejados e os jornalistas ingleses vêm passando apuros com toda sorte de cerceamentos. Uma das mordaças vem de medidas judiciais draconianas que impedem preventivamente que determinado assunto (ou o nome de determinado indivíduo) seja retratado em reportagens. De tão severas, essas medidas foram apelidadas por Alan Rusbridger, o editor do Guardian, de “superinjunctions”, pois elas não apenas vetam previamente a publicação de reportagens, como proíbem que o jornal noticie que sofreu esse veto. Estamos falando, portanto, de uma dupla proibição caprichosamente desfechada por uma peça única.
Outro tipo de mordaça vem da intervenção direta. O próprio Rusbridger declarou há dois dias que foi obrigado a deletar arquivos confidenciais com as denúncias de Edward Snowden, arquivos que a redação do Guardian mantinha em seus computadores, para atender à pressão do governo. “Foi um dos momentos mais bizarros da história do jornal”, escreveu. Rusbridger contou ainda que representantes do governo estavam presentes para conferir de perto a destruição de discos rígidos de computadores. Eles queriam “ter a certeza de que nada pudesse constituir uma fonte de interesse para eventuais agentes chineses”. Claro: por essas e outras, o editor do Guardian também acredita que hoje, no Reino Unido, graves ameaças conspiram contra a liberdade de imprensa.
Há algo de podre no Aeroporto de Heathrow. Os sonhos de liberdade que, há mais de dois séculos, moldaram o nosso mundo talvez não tenham permissão de pouso para figurar no nosso presente.
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Eugênio Bucci é jornalista, professor da ESPM e da ECA-USP