Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Da guerra ao terror à guerra ao jornalismo

Governos em geral são perigosos, sobretudo porque andam armados. Governos democráticos paranoicos podem ser muito piores. Quando seus líderes erram na interpretação da realidade, contaminam todos os segmentos do poder com o discurso do desprezo pela liberdade. E a polícia, secreta ou ostensiva, habitualmente é o departamento que melhor traduz mensagens governamentais desse calibre. Foi o que aconteceu domingo no aeroporto de Heathrow, em Londres, quando o advogado David Miranda, 28 anos, ficou detido por nove horas e teve parte de sua bagagem confiscada por “crime”, em suposto delito previsto no capítulo VII da Lei Antiterrorismo britânica.

Miranda é brasileiro e está casado com o americano Glenn Greenwald, jornalista residente no Rio. Nos últimos meses, Greenwald publicou no Globo – em parceria com este repórter e Roberto Kaz –, no Guardian e na revista Época reportagens sobre o material coletado e divulgado por Edward Snowden, que trabalhou para a Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA, na sigla em inglês).

O caso Miranda sugere uma evolução da paranoia da guerra ao terror para a guerra ao jornalismo. Nele há indícios suficientes para que alguém acredite no início de uma escalada planejada e coordenada entre os governos Barack Obama, em Washington, e David Cameron, em Londres, com o objetivo de qualificar o exercício do jornalismo como crime de terrorismo.

Lágrimas de governantes

Sempre há governos preocupados em intimidar jornalistas. A Rússia de Vladimir Putin, o Irã de Mahmoud Ahmadinejad, a Venezuela de Nicolás Maduro e a Argentina de Cristina Kirchner são casos exemplares. No Brasil pós-ditadura, cultiva-se pelos Estados uma forma inovadora de intimidação e de censura – a do Judiciário. No Pará e no Espírito Santo, por exemplo, há jornais impressos e eletrônicos com média de 40 processos (em parte deles, a divergência sobre a liberdade de expressão foi iniciada em Juizados de Pequenas Causas por juízes e promotores locais afetados em seus interesses pessoais ou corporativos).

Na detenção de Miranda, em Londres, é possível perceber que Obama e Cameron tentam reinventar a censura, abusando das franjas da legislação antiterrorismo local, cuja premissa é “tudo aquilo que não é obrigatório, é proibido”. Ao insistir em transformar jornalistas em terroristas, eles conseguiram fazer sua pior escolha política: candidataram-se à galeria dos líderes em terrorismo de Estado deste século. Sim, porque, como lembrou Simon Jenkins no Guardian, “assediar a família daqueles que têm perturbado a autoridade é a forma mais obscena de terrorismo de Estado”.

Obama e Cameron devem desculpas ao público de todos os continentes e a Miranda e Greenwald em particular – se desejarem demonstrar que não são líderes empenhados em construir um legado de desprezo pela liberdade. Com o jornalismo, nem adianta discutir a relação. Jornalistas não acreditam em lágrimas de governantes. Passam a vida tentando compreender episódios como o ataque a Miranda em Londres, em busca de respostas para perguntas como “o que”, “quem”, “onde”, “quando”, “como” e “por quê”.

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José Casado, de O Globo