Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Democracia ameaçada

Há algo de profundamente chocante na detenção por nove horas do carioca David Miranda no aeroporto de Heathrow, próximo a Londres, no último domingo (18/8). Legalmente, a polícia britânica tem o poder de reter suspeitos de envolvimento com terrorismo por esse tempo sem autorização judicial, sem que precise se explicar. Marido do repórter Glenn Greenwald, que no diário The Guardian e aqui no Globo denunciou o invasivo sistema de espionagem dos EUA, Miranda não foi detido por ser suspeito de terror. Foi detido para que seu marido fosse intimidado. Um Estado que usa sua força descomunal para pressionar pessoas não é raro. De quase democracias como a Venezuela chavista e a Rússia de Putin, passando por incontáveis ditaduras escancaradas, acontece a toda hora. Quando é o governo britânico que cruza essa linha, o espírito do totalitarismo está se espalhando.

Greenwald entrevistou o ex-agente da CIA e da NSA Edward Snowden, revelando o sofisticado sistema que permite acompanhar o que ocorre na internet. Snowden, um cidadão americano, cometeu um crime. Talvez possa ser enquadrado na categoria de whistleblower, aquele que sopra o apito, que vaza informação secreta a que o público não deve ter acesso. Isso só a Justiça do país poderá decidir.

A reação do governo americano foi violenta. Interveio no país que pôde para evitar a concessão de exílio a Snowden. Quando desconfiou que o presidente boliviano Evo Morales o carregava em seu avião, forçou o pouso da aeronave ao manobrar para que Espanha e Portugal negassem autorização de entrada no espaço aéreo. É no mínimo inusitado tratar de forma assim grosseira um chefe de Estado. Quando o presidente russo Vladimir Putin concedeu asilo provisório a Snowden, Obama cancelou um encontro. Na linguagem diplomática, é um gesto extremo, ainda mais se levarmos em conta que EUA e Rússia são as duas maiores potências nucleares do mundo, de quem se espera temperança.

Período triste

Snowden revelou muito pouco. Tão pouco, aliás, que é impossível realmente entender como funciona o sistema de espionagem dos EUA. Talvez Washington creia que ele sabe mais e que pode revelar a nações estrangeiras outros detalhes. Talvez o motivo seja outro: fazer dele um exemplo. Fato é que, justificadamente ou não, a reação ao vazamento não parece ter limites.

A liberdade nasceu no Ocidente. É uma invenção cultural nossa. A liberdade da opressão do Estado começou em 1215, justamente na Inglaterra, quando um grupo de barões impôs ao rei João a Magna Carta, um documento que tirava de Sua Majestade, entre outros, o direito de fazer prisões arbitrárias. A revolução americana, que criou a primeira democracia moderna já embalada pelos pensadores liberais do Iluminismo, é descendente direta daquele documento inglês. E foi justamente em solo inglês que, no domingo, David foi detido porque o governo britânico queria enviar um recado. Segundo o Guardian, os EUA haviam sido informados de que a detenção poderia ocorrer. Não está claro se houve incentivo ou não.

No Reino Unido, a imprensa reagiu com indignação. Snowden pode ter cometido um crime. Greenwald é um repórter. O mensageiro. Segundo a legislação de boa parte das democracias plenas, se não de todas elas, ele não cometeu qualquer crime. Seu marido, que sequer participou da entrevista, muito menos. O governo cubano pressiona familiares para ameaçar quem persegue. O governo chinês também o faz. Ponha-se na lista o governo britânico. O Reino Unido não é uma ditadura. A qualidade de sua democracia, porém, será conhecida nos próximos dias e semanas. O Parlamento irá questionar o gabinete de David Cameron. A imprensa irá averiguar de onde veio a ordem. Alguém na polícia terá de se explicar. A legislação que permite este tipo de abuso pode ser revisada. Haverá movimento, reação. Num Estado de leis, abusos ocorrem. Mas não ficam impunes. Esta é a diferença.

Enquanto isso, nos EUA, cada nova revelação mostra o quanto das leis americanas foram quebradas pela NSA. É um período triste.

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Pedro Doria é colunista do Globo