Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Somos todos Edward Snowden!

Cabelo curto, aparado, óculos retangulares, bigode e barbicha por fazer, o homem sentado diante dos repórteres no aeroporto de Moscou, na sexta-feira, 13 de julho passado, parecia um cidadão normal. Mas sua fala, se não removeu montanhas, mexeu com elas, suscitando um terremoto. Com voz pausada, narrou em que consistia o cotidiano do seu trabalho: “Eu, sentado na mesa, poderia grampear qualquer pessoa, desde você que está me ouvindo até um juiz federal e mesmo o presidente da república, precisando apenas de um e-mail pessoal.” E completou: “Não quero viver num mundo onde tudo o que eu fizer e disser esteja registrado. Não é a vida que eu quero viver e isto é algo que não estou disposto a aguentar.”

Cerca de um mês antes, o jornal inglês The Guardian publicou reportagem de Glenn Greenwald sobre as revelações de Edward Snowden a respeito das políticas de espionagem do governo estadunidense. A grandeza dos dados desafia a imaginação. Acionando os programas Prisma e XKeyscore, a Agência Nacional de Segurança/NSA dos Estados Unidos armazena, diariamente, 1 a 2 bilhões de registros – e-mails, conversas online e todo tipo de comunicação. Apenas em março de 2013, a Agência coletou 97 bilhões de peças de informação de computadores de todo o mundo, contando com a colaboração das companhias provedoras: Google, Apple, Facebook, Yahoo etc. Thomas Drake, ex-empregado da Agência, confirma: trata-se de um sistema vasto e institucionalizado, trabalhando em escala industrial. Nenhuma comunicação dos e para os EUA escapa do olho da NSA. Ouviu-se então um coro mundial, reatualizando o lendário conto infantil: “O rei está nu!”

A virtude e o vício

O rei, Barak Obama, bem que tentou tapar as vergonhas, explicando o inexplicável e defendendo o indefensável. Insiste em dois pontos: o sistema é imprescindível – para combater o terrorismo internacional – e é legal, pois aprovado pelo Congresso dos EUA.

Não convenceu.

A espionagem, de fato, estende a teia muito para além dos “suspeitos de terrorismo”, abrangendo chefes de estado de “países amigos”, sem falar nas atividades e conversas que, não tendo nada a ver com o terrorismo, caem, mesmo assim, na rede espiã, servindo para instruir representantes e agentes do governo estadunidense em suas manobras. E não só: a vida privada dos espionados está nas mãos da NSA, que usará as informações de acordo com os seus critérios – e interesses. Neste amplo leque, quem não estará agora preocupado em tapar as próprias vergonhas que poderão ser, a qualquer momento, expostas pelo governo do rei nu?

Quanto à legalidade, há controvérsias, pois a legislação atual dos EUA, condicionada pelo que Jürgen Habermas chamou de “envenenamento da cultura política”, desrespeita direitos e garantias constitucionais, ameaçando a liberdade de imprensa e o jornalismo investigativo.

Uma coisa é certa: se a nudez do rei é engraçada, porque fragiliza e ridiculariza Sua Majestade, a nudez de cada um e de todos, à mercê do Estado, é inquietante porque enfraquece a democracia.

Como disse John Cassidy, o Estado não pode ter segredos para a cidadania, mas a cidadania deve ter os segredos respeitados. Jill Lepore lembrou Jeremy Bentham: “O segredo é um instrumento de conspiração e não deveria ser um sistema normal de governo. Sem publicidade, nenhum bem é permanente; sob a publicidade, nenhum mal continua.” Ou seja, a publicidade no Estado é uma virtude; o mistério, um vício. O inverso ocorre em relação à cidadania, cujos segredos devem ser defendidos, pois esta é uma condição do regime democrático.

Respeito merecido

Em vez de se vestir com uma autocrítica, porém, o rei nu saiu à caça de Edward Snowden. Mas este escapou para a Rússia, onde lhe foi concedido asilo por um ano. Um paradoxo, pois a Rússia não é, como se sabe, um país onde a liberdade de informação é respeitada. Mas seria farisaísmo culpar Snowden, pois ele está impedido de sair de lá pelo próprio governo dos EUA, que o acusa de “impatriota” e de “ traição”.

O rei quer prender e julgar o súdito “inconfidente”. E garante, pela voz do procurador-geral, que não vai torturá-lo ou matá-lo. Ora, quando alguma autoridade formula este tipo de “garantia” é um mau sinal – sinal de que não é possível confiar. Snowden não é um inconfidente nem um delator. Também não é um herói, pois, como Brecht fez Galileo dizer na famosa peça, infeliz é a terra que precisa de heróis.

Edward Snowden virou um cidadão do mundo. Sua pátria, agora, são os seus sapatos. Mas não perdeu as convicções. Nem a honra. E por isso merece respeito. Em 1968, na França, um líder estudantil, Daniel Cohn-Bendit, judeu e alemão, foi perseguido pelas autoridades, sob o argumento de que não era francês. Os estudantes reagiram: “Somos todos judeus e alemães.” Os cidadãos de todo o mundo, hoje, devem proteger Edward Snowden com um coro análogo: “Somos todos Edward Snowden!”

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Daniel Aarão Reis é professor de História Contemporânea da UFF