A piada já tomou conta das redes sociais. Esqueceu a sua senha bancária? Pergunte ao presidente Barack Obama. Quer saber quem é o pai da criança? Pergunte a Obama. Mas há algo ainda mais grave do que o presidente dos EUA bisbilhotar a nossa vida privada: é os EUA bisbilhotarem a nossa vida privada (ou qualquer outra coisa) sem o presidente, o poder público, estar sabendo. Esse cenário é aterrador para a democracia nos EUA e no mundo. À medida que surgem mais detalhes sobre o amplo esquema de espionagem americano, é de se questionar se alguém controla ou consegue controlar tamanha estrutura.
É inútil criticar a espionagem. Todo governo espiona, dentro e fora de suas fronteiras. Espiona-se tanto os inimigos como os amigos. Até o Vaticano teve durante séculos, e talvez ainda tenha, o seu serviço secreto. Empresas também espionam, como vimos no caso da disputa pela Brasil Telecom. Para proteger seus cidadãos dos excessos de curiosidade alheios, os países costumam ter leis. A regra do jogo, quando um caso de espionagem entre aliados é exposto, é desconversar. O espionado reage com indignação (em geral para consumo político interno). Quem espionou não se desculpa, pois seria uma admissão da espionagem; dá apenas alguma justificativa esfarrapada. E os dois lados esperam o assunto cair no esquecimento. Foi o que ocorreu quando Snowden revelou que os EUA espionaram os aliados europeus. A presidente brasileira, Dilma Rousseff, vem insistindo em explicações detalhadas, que não virão.
Mas o que está acontecendo nos EUA ameaça deixar no chinelo qualquer estrutura de espionagem já montada na história da humanidade. É algo mais perto do Grande Irmão orwelliano do livro 1984.
Diretor da Inteligência Nacional mentiu
Pelo que se pode inferir a partir do material vazado até agora pelo ex-funcionário da CIA Edward Snowden (hoje asilado na Rússia), a NSA (a agência que centraliza a espionagem de interceptação de sinais dos EUA) pode monitorar quase qualquer comunicação de dados em redes não seguras e até em redes supostamente seguras, como a da Petrobras e a do serviço diplomático francês. Pode quebrar a criptografia utilizada para proteger essas mensagens. Pode ainda monitorar e escutar qualquer conversa que passe por rede de telefonia e satélites americana, e talvez até fora dos EUA. Pode invadir computadores e smartphones em qualquer lugar do mundo, inclusive por meio de back door, uma porta secreta no equipamento embutida pelo fabricante americano em parceria com a NSA, segundo divulgou o jornal The New York Times.
Essa megaestrutura de espionagem foi criada supostamente para garantir a segurança dos americanos. Os atentados terroristas de 2001 em Nova York e Washington expuseram as limitações da inteligência dos EUA à época: falta de pessoal especializado no mundo árabe, falta de pessoal in loco, dificuldade de se infiltrar nas organizações extremistas, entre outras. A solução, como parece estar ficando claro, foi montar o mais sofisticado sistema de espionagem à distância, a partir da aprovação pelo Congresso dos EUA, às pressas, semanas após os atentados, do Patriot Act.
Mas quem garante os americanos (e o resto do mundo) contra o poder desse serviço de espionagem hipertrofiado?
A maior parte dessa estrutura é chefiada por militares. O diretor da NSA é Keith Alexander, general do Exército. O diretor da Inteligência Nacional (DNI) é o ex-general da Aeronáutica James Clapper. Ambos negavam até pouco tempo atrás que os EUA espionassem seus próprios cidadãos sem autorização judicial, o que é proibido por lei. Após as revelações de Snowden, Clapper enviou carta à Comissão de Inteligência do Senado americano na qual se desculpava por ter dado uma informação errada num depoimento. Questionado por um senador em março se o governo coletava dados sobre milhões de americanos, Clapper respondeu: “Não, senhor.” Não era verdade.
Inconstitucionalidade na coleta de dados
Agora sabe-se que virou prática normal na NSA espionar sem autorização da Fisa (Foreign Intelligence Surveillance Court), a corte criada especialmente para julgar pedidos da inteligência. O The New York Times informou ontem (11/9) que a corte alertou a NSA em 2009 para violações e acusou a agência de não informar os juízes corretamente.
Está claro também que essa estrutura já foi desviada do objetivo de segurança para espionagem política e industrial. Segundo fontes, citadas em junho pela agência de notícias Bloomberg, e não identificadas, “milhares de empresas de tecnologia, finanças e industriais estão trabalhando junto com as agências de segurança dos EUA, fornecendo informações sensíveis e recebendo em troca benefícios que incluem acesso a dados secretos de inteligência”. Ou seja, empresas americanas podem estar colaborando com a espionagem em troca, por exemplo, de informações obtidas pela espionagem na Petrobras.
Quem ordenou tudo isso? Quem controla? Quem negocia essas parcerias? Poucos sabem. Essa falta de transparência já preocupa setores da sociedade americana. A União Americana para Liberdades Civis (Aclu, na sigla em inglês) entrou com uma ação na Justiça dos EUA alegando a inconstitucionalidade da coleta de dados de telefonemas pela NSA. Curiosamente, a iniciativa tem apoio de libertários democratas, como o ex-vice-presidente Walter Mondale, e de republicanos que se opõem ao excesso de Estado.
Ampliar a transparência
“Esse programa da NSA viola a privacidade dos americanos e a Constituição dos EUA”, disse ao Valor Patrick Toomey, advogado da Aclu. “Certamente achamos que esses programas de espionagem são uma invasão de privacidade sem precedente contra cidadãos americanos e de outros países.”
O ex-presidente Jimmy Carter (do mesmo Partido Democrata de Obama) disse à revista alemã Der Spiegel, logo após as revelações de Snowden, que “os EUA não tinham democracia funcionante neste momento”.
Toomey faz um juízo menos rigoroso. “A democracia não pôde funcionar como deveria por falta de transparência. Aparentemente não foi fornecida [pela NSA] informação suficiente ao Congresso para que este exercesse a sua função de controle. Mesmo a informação fornecida às comissões fechadas parece ter sido limitada.”
Ampliar essa transparência é o mínimo que se pode esperar dos três anos que restam a Obama.
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Humberto Saccomandi é editor de Internacional do Valor Econômico