Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

‘Precisamos nos preparar para evitar uma guerra cibernética’

Aos 71 anos, o ministro de Defesa Celso Amorim registra um recorde em sua história. Em 2009, quando era chanceler de Lula, a revista norte-americana Foreign Policyo chamou de “o melhor ministro de Relações Exteriores do mundo”. De viagem pela Argentina, onde firmou um acordo com seu colega Agustín Rossi para ampliar o trabalho conjunto, dialogou com a Página/12 na residência do novo embaixador brasileiro Everton Vieira Vargas.

Você é ministro de Defesa, foi chanceler do presidente Itamar Franco e nos dois mandatos de Lula. O Brasil tem uma doutrina de defesa. Que relação há entre essa doutrina e a da Unasul, expressa nos documentos do Conselho Sul-americano de Defesa? Quais as diferenças, as semelhanças e os pontos comuns?

Celso Amorim– Unasul é uma dimensão importante de nossa política de defesa, o que não quer dizer que outros países não possam ter visões diferentes. Em nossa região – e quando falo de região me refiro a América do Sul – nós achamos que deve reger a cooperação. A cooperação é a melhor forma de dissuasão. Portanto, todos os trabalhos da Unasul sobre criação de confiança, de cooperação industrial, de exercícios comuns, têm para nós um grande valor.

Não quero interpretar os demais países, mas acho que, se a cooperação vale para o Brasil, também é valiosa para os outros países. Quando se discute temas globais no mundo, o fato de que nossa região seja pacífica é um valor a favor extraordinário. Quando se fala da competitividade e se fala da capacidade de atração de investimentos, se trata de uma vantagem formidável para a paz. E isso também nos dá grande autoridade para falar de outros problemas no mundo. O Conselho Sul-americano de Defesa da Unasul é uma dimensão importante. Mas, além disso, acho que temos em comum uma série de interesses.

Talvez o mais evidente de todos seja a defesa dos recursos naturais. Somos uma região muito rica em energia, em capacidade de produção de alimentos, em água doce, em biodiversidade… Também somos uma região muito diversificada, desde o trópico mais equatorial até a Tierra del Fuego. Contamos com oceanos dos dois lados. Tudo isso nos constitui como uma região que deve ter uma visão comum de defesa.

“Queremos o Atlântico Sul como zona de paz”

Uma defesa comum?

C.A.– Não é necessária. O necessário é a visão comum. É o trabalho que também queremos desenvolver no Conselho Sul-americano de Defesa. Por isso estimulamos a criação de uma escola sul-americana de defesa. Temos pontos comuns evidentes, como os que mencionei antes. Também queremos encarar o monitoramento de nossas áreas especiais. Para o Brasil, a Amazônia é uma zona óbvia para cuidar, mas ao mesmo tempo falo do mar territorial ou de regiões especiais, que são fatores que podem propiciar uma cooperação.

Fale do Atlântico Sul e o litígio das Malvinas dentro do Atlântico Sul?

C.A.– Bom, tem a ver com o Atlântico Sul. Nossa posição sobre as Malvinas é muito conhecida e não tenho necessidade de repeti-la. Defendemos sempre os direitos argentinos e uma solução negociada. Mas o Atlântico Sul, além do problema muito importante das Malvinas, apresenta outros problemas muito importantes. Há estradas chave. Chave para a Argentina, claro, mas como ministro de Defesa do Brasil falo de que uma proporção enorme de nosso comércio exterior vai pelo Atlântico. E nossos provedores de petróleo, porque ainda não conseguimos o auto abastecimento e também há diferentes tipos de petróleo cru, são a Nigéria, a Angola, a Argélia… O transporte, em todos os casos, passa pelo Atlântico Sul.

Além disso, como você sabe, o Brasil tem uma relação muito próxima com a África. É uma relação histórica que cobra mais e mais importância, o que nos leva a ter uma maior presença cultural e econômica. Outra razão mais, então, para preocuparmo-nos com o Atlântico Sul. Agora, queremos garantir a segurança do Atlântico Sul justamente com os países do Atlântico Sul. Do ponto de vista geopolítico, é natural a cooperação dos países da costa ocidental da África e dos países da América do Sul. Todos conformam a zona de paz do Atlântico Sul. Por estes dias realizaremos, no Brasil, um seminário muito importante em Salvador, Bahia. A Argentina participará com um conferencista. Por isso queremos manter o Atlântico Sul como zona de paz, de cooperação, livre de armas de destruição massiva.

“Quando alguém se prepara para se defender, desestimula ataques”

Ministro, eu mencionei a palavra “defesa” e em sua resposta você incluiu a palavra “recursos”. De quem a América do Sul deve defender seus recursos? De riscos potenciais ou há uma identificação precisa?

C.A.– Não, não há uma identificação específica. Ao menos no caso do Brasil, não temos inimigos. Talvez seja assim por fortuna histórica, ou pela diplomacia do passado. Não sei… Temos relações muito boas com as diferentes potências. Mas é suficiente que alguém olhe a história, por um lado, ou por outro lado que olhe os estudos sobre a prospectiva dos recursos naturais no futuro, para pensar que há eventualidades que podem acontecer. Devemos estar preparados para refutar qualquer tentativa de alcançar um alvo, de qualquer lugar que venha. E nisso entra a necessidade de ter capacidade de dissuasão. Por isso disse que dentro da região, dentro da América do Sul e talvez isso valha para outros países como os da África, tem que considerar que em um mundo global e, ainda que não tenhamos nenhum inimigo declarado ou não declarado, devemos ter uma política de dissuasão.

A dissuasão é para que sequer chegue a existir um inimigo?

C.A.– Exato. É uma forma muito inteligente de ver a questão. Quando alguém se prepara para se defender, desestimula ataques de outros países que possam, em alguma situação, achar que necessitam algo. Do etanol, que o Brasil produz, para dar um exemplo. De água doce, que há nos aquíferos. A dissuasão fará com que, antes de tentá-lo, alguém pense duas vezes.

“[O Centro de Defesa Cibernética] deteve vários ataques”

Quais são as principais linhas de desenvolvimento de armamentos que o governo de Dilma Rousseff se propõe desdobrar?

C.A.– Temos três áreas consideradas estratégicas. Uma é a nuclear, com o plano de desenvolver o submarino de propulsão nuclear. O Brasil tem a costa atlântica mais longa do mundo. Acho que mais longa ainda que a costa argentina. A descoberta e exploração do pré-sal, das jazidas petrolíferas a muita profundidade, valorizam ainda mais a costa. Uma vigilância eficaz só pode ser feita por um submarino que possa ficar muito tempo embaixo da água. Outro plano estratégico é o espacial. Inclui a capacidade de lançamento e também satélites. Está a cargo da Força Aérea. O terceiro aspecto estratégico, muito atual, é a defesa cibernética. Não o digo eu sozinho. Se você lê análises e comentários de gente das grandes potências – e não quero particularizar – verá sua tese. Nós não queremos guerra, claro, mas eles dizem que, se houvesse uma guerra, essa guerra do futuro seria cibernética. Inclusive para evitar uma guerra desse tipo há que estar preparado.

Estamos pensando em realizar um grande esforço na área da defesa cibernética. Já antes de 2010 haviam equipes trabalhando nisso, mas depois dessa data criamos um Centro de Defesa Cibernética com base no exército mas que serve também às outras forças. Já atuou em situações pontuais, não comparáveis ao ataque de uma potência estrangeira.

Atuou em tarefas de prevenção?

C.A.– Sim, por exemplo durante a cúpula do Rio + 20, na Copa das Confederações, na visita do papa Francisco… Deteve vários ataques cibernéticos. Obviamente são ataques de hackers, algo incomparável com o que pode acontecer em uma situação de conflito em grande escala.

A importância de colher informação

Esses ataques são comparáveis com a intercepção de comunicações e mensagens da presidenta e seus conselheiros?

C.A.– Você pode fazer a comparação que desejar.

A intercepção foi um ataque?

C.A.– Não o caracterizaria desse modo, o que não quer dizer que não tenha sido uma intrusão para colher dados. É como se você me perguntasse se a espionagem é o mesmo que a guerra. Nesses casos estamos, de certo modo, no limite. Um limite que não se pode passar. Mas quando se fala de defesa cibernética se pensa mais em um ataque do tipo do que pode realmente afetar todo um sistema. O sistema elétrico, o sistema de controle dos aeroportos… Várias coisas… Um ataque assim pode gerar o efeito de uma arma de destruição massiva.

Como uma sabotagem de amplo alcance.

C.A.– Pode ser. Mas isso não diminui a importância da tentativa de colher informação, um tema que tem vários aspectos. Envolve a invasão de privacidade quando se trata de cidadãos. Ou o que tem a ver com recursos naturais e com a tecnologia para obtê-los. Tudo isso é preocupante. Não tenho o detalhe das explicações que meu colega recebeu do ministro de Relações Exteriores, ou seja, não posso comentar em detalhe.

A eliminação das rivalidades

Ao comparar sua gestão com Lula e a gestão dos dois chanceleres de Dilma, há uma intensidade diferente na relação do Brasil com o resto da América do Sul e com a Argentina em particular?

C.A.– Deixo esse tipo de questões para os analistas. Eu tenho meu trabalho de ministro. Mas lhe digo que as prioridades continuam sendo as mesmas. Não tenho nenhuma razão para acreditar que a intensidade seja diferente. É a mesma. Há estilos que dependem das pessoas, mas os estilos não marcam diferenças de fundo.

Deixando de lado, como forma de analisar as coisas, o sentimento de irmandade, a solidariedade ou os atos generosos, em que convém ao interesse nacional brasileiro uma aliança sólida com a Argentina e com o resto dos países da América do Sul?

C.A.– É muito difícil separar a conveniência dos sentimentos fraternos e da solidariedade. Inclusive é difícil separá-la da generosidade. Quando era chanceler, disse muitas vezes que devíamos ser generosos porque assim defenderíamos também nossos interesses a longo prazo. Temos interesse em manter boas relações com nossos vizinhos. E com a Argentina, país com o qual as relações são mais intensas, com mais razão. Houve uma pequena queda em 2012, mas entre 2000 e 2011 as exportações brasileiras à Argentina passaram de dois bi a mais de vinte bilhões de dólares. As importações da Argentina não cresceram tanto, mas também aumentaram muito. Pensemos que no intercâmbio é importante a presença de bens manufaturados. Também registramos um crescimento do comércio com outros países da região. Isso não tem a ver com o interesse nacional? Claro. Mas quando Raúl Alfonsín e José Sarney se aproximaram, o interesse econômico existia. Entretanto, ao mesmo tempo era um instrumento para a consolidação da paz, a eliminação das rivalidades, que talvez não fossem tão reais, mas imaginárias, ainda que o imaginário na política tenha sua importância…

“Não acho que nossa economia vá se reprimarizar”

E estavam as corridas atômicas paralelas.

C.A.– Fico muito orgulhoso, pois antes de ocupar a Chancelaria pude ser o negociador principal para a contabilidade e o controle nuclear entre a Argentina e o Brasil.

A Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares?

C.A.– A negociação e o acordo bilateral foi o que possibilitou a ABACC.

Ministro, um dos desafios que o Brasil e a Argentina enfrentam, cada um a seu modo, é o perigo de reprimarização na relação com terceiros países. A China, por exemplo. Se a relação comercial se baseia em exportar mineral de ferro ou soja e se essa exportação gera divisas imprescindíveis para o Brasil e a Argentina, como se consegue a combinação justa de equilíbrio e contradição?

C.A.– Também exportamos aviões à China. E os aviões são de alta tecnologia. Sem falar da China em particular, em geral com o mundo que exportamos e que importamos é algo que deve preocupar-nos. Queremos uma inserção com muito valor agregado. Eu não diminuiria tanto o valor das exportações agrícolas. Hoje, dentro da agricultura, há muita tecnologia. Isso dá valor agregado, ainda que seja menos óbvio.

O Brasil acaba de superar pela primeira vez os Estados Unidos em soja. Só foi possível, não por subvenções ao produtor, como fazem os Estados Unidos, e sim por grandes investimentos em tecnologia. A soja deixou de ser possível só em climas temperados. Dito isso, acho que nossa cooperação seria muito importante. Por que, em lugar de discutir como compete uma geladeira feita no Brasil com outra feita na Argentina, não fazemos uma geladeira juntos? Mas volto ao meu tema, como ministro. Podemos fazer muitas coisas juntos em Defesa. Nós temos um conceito original de avião de transporte. Mas muitas partes importantes serão fabricadas na Argentina. O KC390, que pode substituir os Hércules, é um exemplo. Podemos vendê-lo.

Não quero entrar em terrenos sociais, onde me sento menos firme, mas penso que não apenas é questão de vender bens alimentícios ou minerais. Também se trata de saber utilizar os recursos que se obtém dessas exportações para investir em planos de alta tecnologia. Há toda uma complexidade por indagar.

De todos modos, não acho que nossa economia vá se reprimarizar, mas admito que é uma preocupação a considerar. Enquanto isso, temos muito que fazer juntos. O exemplo é o reator nuclear. Ao melhor, algum dia podemos vendê-lo, também. Vocês já venderam algo à Austrália, não? Os aviões do Brasil, talvez com alguma contribuição importante da Argentina, podem também ser vendidos. Continuamos aprendendo dos avanços que vocês alcançaram em radares. Aí vejo outro campo de cooperação. Trabalhemos em tudo isso. A defesa tem um alto poder de indução em investimentos de valor tecnológico. E nem falar de outras áreas que a Argentina levantou, com razão, na Unasul, como os medicamentos.

“Um Estado falido é um fator de instabilidade”

Que relação tem a produção de medicamentos com a defesa?

C.A.– Os medicamentos são necessários para os soldados. Se trata de corporações onde vive muita gente junta e as doenças podem difundir-se.

Qual é o maior fator de instabilidade concreta que vê hoje no mundo? Síria, Oriente Médio?

C.A.– Seria difícil olhar a Síria, e a Síria dentro do Oriente Médio, e não preocupar-se. Tampouco diria que a questão dos recursos está ausente do conflito, ainda que haja outras razões também: línguas, culturas… Mas também os recursos têm grande importância. Seria ingênuo supor o contrário. A intervenção no Iraque se deveu às armas químicas que – como ficou demonstrado depois – não existiam. Saddam Hussein era um ditador, mas não era o único ditador no mundo. Por que foi eleito Saddam Hussein? Porque além de ser um ditador tinha petróleo. No Brasil também nos causa preocupação a instabilidade em alguns países africanos. Acho que a África está avançando inclusive em termos de mudanças de governo e evolução democrática, ainda com todas as imperfeições que têm os processos políticos quando recém começam. Mas para nós, questões que inicialmente pareciam mais afastadas, mas que também tinham a ver com recursos, como a questão da Líbia, terminaram com uma desestabilização que afetou o Mali e depois o litoral ocidental da África, com o que voltamos à problemática do Atlântico Sul. Um Estado falido, para usar o vocabulário internacional, sempre é um fator de instabilidade. Mas hoje, naturalmente, o foco de instabilidade parece muito concentrado no Oriente Médio. De todos modos, quero referir-me a um fator de instabilidade que as vezes não se menciona.

A proliferação do poder destrutivo

Qual é esse fator?

C.A.– O fato de que alguns países tenham a capacidade de destruir várias vezes o mundo com seus arsenais nucleares é um grande fator de instabilidade. Porque isso gera outras instabilidades. Não vejo justificativa para que nenhum país tenha armas químicas. A Argentina e o Brasil firmaram o acordo correspondente. Mas é um estímulo negativo que existam armamentos nucleares e que não se trabalhe de maneira firme para eliminar os arsenais nucleares. Disso não se fala. Como se dissessem: “Os arsenais estão em mãos de países sérios e podem utilizá-los. O problema são os países não-sérios.” Me parece que esse raciocínio é em si mesmo uma fonte de instabilidade de potencialidades gravíssimas.

Existem menos armas nucleares, mas têm maior poder de dano.

C.A.– Sim, porque houve um esforço de destruição. Não tantas menos, de qualquer maneira, porque muitas existem ainda que não estejam mais em estado de alerta. E também, efetivamente, existem menos armas nucleares, mas seus proprietários continuam trabalhando na “eficácia”, e o digo entre aspas. Essa “eficácia” supõe uma maneira de proliferar. É a proliferação do poder destrutivo. E disso não se fala.

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Martín Granovsky, do Página/12