Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Paz sem voz não é paz, é medo

Dessa vez apareceu um nome de um desaparecido no gueto e a imprensa “deitou e rolou” na suíte. A sociedade cobrou explicações dos responsáveis, porém, o antigo “ninguém sabe, ninguém viu” continuou como outrora. Alguém sabe o que aconteceu com o “Boi” (como era conhecido o ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza), mas não pôde tornar público. Desvendado o nome dos bois, alguns setores da sociedade terão a ingênua surpresa do “corno” que é sempre o último a saber, apesar das evidências. O pior cego é aquele que não quer ver; e o melhor cego tem sensibilidade aguçada.

A operação “Paz Armada” onde Amarildo foi abordado e levado para averiguação na sede da UPP da Rocinha se trata da combinação de três problemas: o silêncio por imposição da força é estado de sítio; não cabe à Polícia Militar investigar, e sim à polícia civil na delegacia; que, por fim, se não estamos num estado sitiado, somos então uma democracia, tampouco combina a existência de duas polícias estaduais (militar e civil) em um Estado Democrático de Direito.

O caso do Amarildo, desaparecido na favela da Rocinha onde morava há 47 anos, revelou (?) um tempo em que a simbiose criminosa entre o poder público e seus vícios aristocráticos se demostram na hegemônica biopolítica punitiva. Só podemos agora nivelar assim uma vez que a opinião pública se perguntou “Onde está Amarildo?”, quando, até então, se resumiam apenas a notinhas nos jornais o sumiço de cidadãos da população à margem da sociedade. Com destaque na imprensa somente pessoas ligadas ao mundo das celebridades, ao exemplo da irmã do lutador Vítor Belfort ou a própria Daniela Perez. Na ficção, os personagens de Gilberto Braga também geravam repercussão como “Quem matou Odete Roitman?” e “Quem matou Lineu?”, emoção que valia a pena acompanhar até o último capítulo; e o autor e /ou o mandante do crime era aquele que menos se esperava.

Se bem podemos comparar, os autores e mandante de crimes, como o de Amarildo, assim como da modelo Elisa Samudio, a título de curiosidade poderemos desconfiar dos mais prováveis. E por falta da prova cabal, tornaram-se ainda mais sinistros. Ambos os casos contaram com cobertura da mídia. No caso da Elisa, após o julgamento, houve a confissão. No de Amarildo, para evitar o julgamento, testemunhas informaram que foram coagidas, intimidadas e subornadas (com dinheiro desviado) pelo major Edson Santos, ex-comandante da UPP da Rocinha. O major negou. Em provérbios populares, a mentira não se sustenta, e se o comandante foi afastado do cargo, seria sinal de que “desse mato não vai sair coelho”. Não se mexe em time que está ganhando. Quando o time vai mal, o primeiro a cair é o técnico.

Problema pessoal

O caso do Amarildo ganhou espaço na imprensa e se colocou ao lado das brutalidades fatais cometidas contra o ser humano. O problema seria da imprensa, diga-se de passagem, o “Quarto Poder” que seleciona o que vai ou não para a sociedade? Claro que não. O que ocorre é que, num projeto essencial para desmitificar o Rio de Janeiro como “Cidade Partida”, as UPPs chegaram, digamos, como primeiro passo pra integração social.

Assim como em qualquer bairro por onde passamos vemos, ao menos, uma cabine da PM numa praça, estenderam-se postos policiais nas favelas também. Daí as favelas passam a “fazer parte” dos bairros. Chamo atenção para um dado. O Rio de Janeiro já viveu essa experiência no final da década de 1990, com o Mutirão pela Paz implantado nas favelas Pereirão, Santa Marta, Formiga, entre outras – um projeto de Luiz Eduardo Soares, então subsecretário de Segurança Pública, servindo como molde do Grupamento Policial em Áreas Especiais (GPAE), que seria reformulado pelo então major Antônio Carlos Carballo Blanco no começo dos anos 2000, mas por falta de vontade política parou na favela do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho. O mesmo modelo de polícia comunitária idealizado por Soares e sua equipe, da qual participou Carballo (atualmente coronel), é propagandeado junto ao nome de José Mariano Beltrame (nome tão veiculado na mídia que dispensa apresentações) como a queda de braço para com o poder de fogo do poder paralelo. Hoje a história é outra.

Semelhante aos desaparecidos políticos que davam azar devido à censura da repressão ditatorial sob os veículos de comunicação em massa, casos como o de Amarildo sequer chegavam à imprensa. Não por um filtro, mas, sobretudo, pela ausência do Estado. Os desaparecimentos, as práticas de tortura e os assassinatos eram política de Estado no Brasil, então governado pelos militares. O caso Amarildo, a chacina na Maré, os tiros na sede do Afroreggae, em dias de ampliação da democracia, despertaram a sociedade para o Estado Democrático de Direito onde todos são iguais perante a lei, e a instalação das UPPs em lugares como “terra sem lei” tornam comum os mesmo ares em que respiramos, gerando um clima ao sabor do “vento que venta lá, venta cá”. Cá entre nós, concordo com o Desabafo, letra de Marcelo D2: “Que cê tem em mente?/ se é que tem algo em mente/ porque bala vai acabar ricocheteando na gente (…)”. Os últimos acontecimentos, então, reforçaram o coletivo e o sentido da cidadania.

Existe um sentimento de mudança na sociedade e as massivas manifestações de rua são prova disso. No mosaico levantado pela população, embora seja das mais diversas pautas, a mais comum entre todas elas foi a bandeira da democracia (ainda que em outras palavras, gritávamos “democracia ampla, geral e irrestrita!”). Período em que as novas gerações são as primeiras a viver (literalmente) esse momento histórico por que passa o Brasil. A experiência das UPPs trouxe para a sociedade o debate da desmilitarização da polícia em coro nos protestos: “Não acabou, tem acabar, eu quero o fim da Polícia Militar”. Essa polícia formada historicamente por símbolos até hoje perpetuados precisa ser reformada para corresponder democraticamente ao seu papel.

Como é público, o policial Douglas Roberto Vital Machado, vulgo “Cara de Macaco”, tinha um problema pessoal com Amarildo e, de maneira semelhante aos traficantes, a atitude moral foi “passar” seu inimigo. Por crime de tortura seguido de morte e ocultação do cadáver, uma tropa de 10 PMs da UPP da Rocinha foi indiciada e o Ministério Público do Rio de Janeiro vai pedir cadeia a todos eles. O Ministério de Direitos Humanos, de Brasília, manda saudações.

Tempo para mudar

A ideia retardada da criminalização da pobreza logo faz desconfiar que Amarildo tinha ligações com o tráfico, conclusão a qual chegou o delegado adjunto Ruchester Marreiros. A farsa foi desmontada pelo delegado Orlando Zaconne, titular da 15ª delegacia (Gávea), responsável por atender a região onde se inclui a comunidade da Rocinha. Por um mesmo pensamento progressista, a Divisão de Homicídios que assumiu a investigação feita inicialmente pela 15ª DP, chega finalmente ao trabalho coerente de Zaconne.

Orlando Zaconne é também ativista e integrante da Law Enforcement Against Prohibition (LEAP), que em bom português traduzido pelo próprio significa “agentes da lei contra a proibição”. O foco é “informar ao público, à mídia e aos políticos sobre a atual falência da política de drogas”, reforçando ideais antiproibicionistas ao tornar claro que a “guerra às drogas” nada mais é do que uma política de genocídio contra os pobres, principalmente os favelados. Junto com o músico Marcelo Yuka, Zaconne fundou a ONG Brigada Organizada de Cultura Ativista (B.O.C.A), que combate com arte e reflexão, formando consciência acerca dos problemas sociais, a começar por dentro dos presídios.

A população carcerária brasileira é quarta maior do mundo e a mais “promissora”. Praticamente quadriplicou há duas gerações, coincidentemente numa situação que o projeto dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), do antropólogo Darcy Ribeiro, buscou através de uma revolução na educação pública de qualidade ser capaz de evitar que o jovem entrasse para o crime. Hoje, os professores que lutam por conquistas da categoria são brutalmente reprimidos pela polícia. Em seu livro O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil, Darcy Ribeiro afirmava:

“Quem quiser acabar com o crime organizado deve conter o subsídio ao vício dado pelos norte-americanos. Até então, o que temos são gestos vãos, de curta duração, incapazes de conter por si os problemas das cidades. É pensável uma Reforma Urbana. Hoje tão urgente quanto a Reforma Agrária”.

Ainda hoje, após cinco anos desde a instalação da primeira UPP no morro Dona Marta, vigora a impressão que os moradores, se não são bandidos, são cúmplices por uma suposta ligação estreita com o crime. Ligação essa tão estreita como a passagem de um beco. Uma revisão de valores está em curso há mais de uma geração e a malandragem da vida fácil não faz a cabeça das crianças, especialmente da favela do Vidigal. Esse morro merece destaque.

Pela arte e cultura, essa mudança se processa na mentalidade dos atores (em duplo sentido de agentes da transformação) pela busca da identidade. A consciência de sua origem e função social, chegando a levar no nome artístico o nome do morro de onde não pensa se mudar, faz de Luciano Vidigal, meu amigo e parceiro, o precursor dessa quebra de paradigma num grupo que provoca pelo próprio nome o preconceito da favela: “Nós do Morro”. No Vidigal, que meninos e meninas não são tomados pela referência de uma Roberta Rodrigues, Marcelo Mello Jr., Luciana Bezerra, Jonathan Haagensen, entre outros tantos, ao invés de optar pela vida do crime? Como relatou Thiago Martins em responder sobre sua profissão, ao ser abordado por um policial. Esse policial faz nova pergunta: “Ah, agora no Vidigal todo mundo é ator?” Essa mudança de conceito impressiona a própria polícia.

Foi no Vidigal que foi filmado o premiado clipe da banda O Rappa ”A Minha Alma (A paz que eu não quero)”. A letra é de Yuka e questiona a felicidade refém de uma suposta “segurança”. Precisamos de tempo para mudar as coisas. E quando existe mobilização da sociedade chamando atenção da opinião pública, é o momento oportuno para que entrem em curso as mudanças que todos ansiamos.

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Paulo Mileno é ator