Uma resposta à cultura da celebridade ou um luta com motivação política? Repórter de uma das principais revistas do mundo, a “New Yorker”, o americano Jon Lee Anderson vê com preocupação a mobilização em defesa de restrições para que se publiquem biografias no Brasil, lembrando que não são apenas os artistas beneficiados, mas também políticos. Anderson é biógrafo de Che Guevara (“Che, uma biografia”, de 1997, lançado pela editora Objetiva) e vem ao Rio em novembro para ministrar uma oficina de reportagem promovida pela Fundação Gabriel García Márquez para o Novo Jornalismo Ibero-Americano, em parceria com as revistas “piauí” e “Serrote” e o Instituto Moreira Salles.
Em entrevista ao Globo, por e-mail, Anderson diz que, pela lei atual, o Brasil se aproxima de Rússia, China e Irã quanto à liberdade de expressão.
Está em debate hoje, no Brasil, o direito de se lançar biografias: de um lado, há os que defendem a liberdade de expressão; do outro, os que dizem que privacidade não pode ser comercializada. Como o senhor enxerga essa discussão?
Jon Lee Anderson – Este debate me lembra um que aconteceu na França, alguns anos atrás, e que terminou com restrições severas às possibilidades de fotógrafos retratarem pessoas. Por exemplo, se você publicasse a imagem de uma pessoa numa manifestação de rua, tecnicamente ela poderia ir à Justiça porque você não lhe pediu permissão. O debate das biografias é similar. Num tempo em que a internet parece acabar com as fronteiras e em que a cultura do tabloide de celebridades conduziu a uma mídia fortemente invasiva, esses debates são reflexo de uma luta para se controlar as representações do indivíduo. Neste sentido, é compreensível que o debate seja travado, mas não estou certo se essas são as razões no Brasil. Trata-se de uma resposta a um fenômeno cultural ou há motivações políticas por trás?
O senhor vê esses dois lados, da liberdade e da privacidade, como naturalmente excludentes?
J.L.A. – Eu não acho que sejam excludentes. Há muitos exemplos de biografias “não autorizadas” bem-intencionadas e de bom gosto. O “não autorizado” significa que o livro não foi feito em conjunto com o biografado, não necessariamente que ele é antagônico ou que se propõe a trazer casos escabrosos sobre uma celebridade. Há sempre alguma violação de privacidade em uma biografia, e se ela vai ultrapassar a linha tênue ou não depende da ética do biógrafo. A sociedade não pode controlar essa situação, especialmente quando ela tem relação com figuras políticas, as quais a população tem o direito de conhecer profundamente em troca do poder que lhes é concedido.
Mas qual é a relevância de histórias privadas para um leitor? Por que jornalistas estão sempre tentando trazer a público aspectos privados de seus personagens?
J.L.A. – Figuras públicas têm enorme influência sobre as vidas das pessoas. Os “astros” não só habitam a imaginação das pessoas graças à cultura do cinema, mas também aparecem o tempo todo em campanhas para jeans, perfumes, brinquedos ou qualquer outro produto que lhe ofereça acordos de publicidade. Essa influência enorme e a opulência que a acompanha conduzem a um interesse generalizado do público. Muitos correspondem a esse interesse, inclusive aos aspectos mais lascivos, participando de reality shows na TV, em que suas vidas privadas são expostas em troca de dinheiro. Já em relação aos políticos, aí eu entendo que deve ser um direito público, em uma democracia, de se saber o máximo possível sobre as pessoas que representam o cidadão.
Hoje, a legislação brasileira protege o desejo do biografado ou de sua família. Mas alguns dizem que o governo deveria ter o poder de interferir em alguns casos em que não há justificativa para não se autorizar o lançamento da biografia. Outros já falam que apenas o leitor tem o direito de decidir o valor de um livro. Para você, é possível definir quem é responsável por autorizar ou não a publicação de uma biografia?
J.L.A. – No mundo ideal, o público teria o bom gosto para decidir o que deve ser considerado como decente ou não numa biografia. Em geral, desconfio de governos tentando intervir nesta área. Na Rússia de Putin, por exemplo, não é possível escrever uma biografia reveladora sobre ele, então os livros são publicados apenas fora do país. É uma pena que o povo russo não tenha acesso a um tipo de informação fundamental para ajudar a criar uma democracia mais madura em que franqueza e honestidade por parte de seus líderes deveriam ser uma obrigação.
Se a legislação brasileira se aplicasse a outros países, algumas histórias como “Frank Sinatra está resfriado”, de Gay Talese; “Shout!”, de Philip Norman, sobre os Beatles; e até o seu “Che” poderiam nunca ter sido publicadas. O quão ruim seria para o leitor?
J.L.A. – Seria muito ruim. Como se vivêssemos numa sociedade orwelliana ou, em comparação com o mundo real, seria algo equivalente em maior ou menor grau a situações comuns em países como Rússia, Irã, China, Cuba, Sudão, Zimbábue, Síria e Arábia Saudita, alguns dos países mais repressivos do mundo.
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André Miranda, do Globo