Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O público e o privado II

Já mencionei aqui o preceito de Valéry, segundo o qual antes de uma investigação teórica é recomendada uma “limpeza da situação verbal”. Nos últimos dias, a questão da lei das biografias no Brasil reacendeu novamente e muitos argumentos equivocados foram convocados. Volto à questão para fazer uma limpeza da situação argumentativa.

Em entrevista à CBN, Paulo Cesar de Araújo, autor da biografia não autorizada sobre Roberto Carlos, lembrou, entre outros argumentos, que o gênero biográfico existe desde a Antiguidade. E, instado a comentar o posicionamento do grupo de artistas capitaneado por Paula Lavigne — que se diz contra a comercialização de biografias não autorizadas, mas não contra a sua publicação, caso não haja fins lucrativos —, lembrou o trabalho imenso de um biógrafo, bem como sugeriu que os artistas defendessem então a finalidade não lucrativa de suas próprias obras. Os argumentos são todos impertinentes.

Em primeiro lugar, a longevidade de um gênero, de uma prática ou de uma lei não serve como fundamento, sob nenhum aspecto, para a defesa de sua manutenção. De maneira semelhante, muitos têm observado que nos EUA as biografias são liberadas. Ora, desde quando a legislação dos EUA pode ser defendida como fundamento, per se, para a reprodução, entre nós, de qualquer prática? Nesse caso, a improcedência do argumento ainda é tristemente colonizada. Voltando aos comentários de Paulo Cesar, sua lembrança do trabalho do biógrafo é tão óbvia e verdadeira quanto deslocada. Aqui, a impertinência descende da impertinência da diferença proposta pelo grupo de Paula Lavigne: a oposição entre biografias com e sem fins lucrativos apenas turva o ponto central (se não único) da questão. Este ponto é o conflito entre as dimensões pública e privada, coletiva e individual: um indivíduo deve ter ou não soberania decisória sobre a dimensão privada de sua vida? Uma vez estabelecido esse ponto, a questão da lucratividade deve ser regida como os demais direitos de autor.

O colunista da “Folha de S.Paulo” André Barcinski sugeriu uma contradição entre a postura de Gilberto Gil quando ministro, a favor dos Creative Commons, e sua defesa de uma suposta lógica privatista na questão das biografias. Essa contradição não existe, pois o que está em jogo é justamente a defesa da dimensão privada como não sendo um commons, isto é, não sendo uma dimensão comum, pública. A licença Creative Commons flexibiliza os direitos sobre obras públicas, tendo como objetivo torná-las o mais coletivas possível. Barcinski sugere também uma contradição entre o passado de Chico Buarque, um dos autores mais censurados pela ditadura brasileira, e sua presente posição de suposto censor. Mais uma vez, a contradição é falsa. Uma censura é inaceitável porque versa sobre matéria de natureza pública. Um cidadão é censurado quando o Estado impede que ele intervenha na situação pública. Ora, novamente, o que está em jogo é a discussão sobre se a matéria biográfica — a vida do biografado — deve ou não ser considerada passível de expropriação pela coletividade, os direitos sobre ela pertencendo ao coletivo, não ao indivíduo. Antes de estabelecer esse ponto, chamar Chico Buarque de censor é uma petição de princípio. (Em tempo: já li ótimos textos de Barcinski e acho excelente a biografia de Paulo Cesar sobre Roberto Carlos.)

Soberania decisória

Ruy Castro, de quem li com grande proveito boa parte das biografias, costuma dizer que não lida com ideias, e sim com fatos. A observação não é, a rigor, verdadeira. O que há de factual em entrevistar uma pessoa de 80 anos sobre um episódio ocorrido em sua juventude? Biografias têm na coleta de depoimentos uma base fundamental de seu resultado. Ora, depoimentos podem até evocar fatos, mas não são, eles mesmos, fatos. Esse esclarecimento epistemológico é importante para lembrar que biografias são interpretações da vida de alguém. A questão que se coloca, novamente, é: o Estado deve garantir que um indivíduo tenha o sentido de sua existência determinado por qualquer outro indivíduo?

Assim, não faz sentido dizer que as pessoas que são contra a mudança da lei desejam que só haja biografias “chapa-branca” no Brasil. O ponto é aquém: elas não consideram que a dimensão privada da existência deva ser objeto de escrutínio e juízo público. Consideram que só o deve ser aquilo que tem natureza pública.

Ninguém nega que as dimensões privada e pública se cruzam, e que o estudo daquela pode esclarecer essa. Mas é preciso pesar o conflito de interesses e decidir qual lado prevalece. Na minha opinião, como já disse em coluna anterior (ver aqui), é o princípio da soberania decisória sobre a vida privada que deve prevalecer.

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Francisco Bosco é colunista do Globo