Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A bebida amarga

Como beber dessa bebida amarga? Tragar a dor, engolir a labuta?

Eram maus tempos aqueles em que as pessoas se dedicavam ao delicado quebra-cabeça de ressignificar as metáforas que vinham semeadas com inteligência, escondidas entre as dobraduras dos textos de jornal e das letras de música.

Como era proibido falar com clareza, a censura obrigava a imaginação a se desdobrar em imagens poéticas para ser decifrada e fruída intelectualmente por aqueles a quem a trava das proibições era uma violência a merecer vingança.

E a vingança era a poesia que escapava à limitação intelectual dos censores.

Pois não é que agora os nossos construtores de metáforas, que incendiaram o imaginário popular com seus impiedosos versos, e aqueles que gritavam que era “proibido proibir” se transformaram eles mesmo na reencarnação moderna do mal contra o qual lutaram?

Como beber dessa bebida amarga?

Não há metáfora que esconda o verdadeiro sentido da ação do grupo Procure Saber, encabeçado pela famosa sabe-se-lá-o-quê Paula Lavigne: vetar biografia não autorizada é censura prévia. A Constituição, à qual um artigo do Código Civil não pode sobrepor-se, veta expressamente a censura prévia.

Sem justificativa

As justificativas que os nomes célebres que aderiram à causa alinhavaram em textos de jornal, tornaram a emenda pior que os seus piores sonetos.

Caetano e Chico escreveram artigos desajeitados no jornal para justificar a sua posição; o primeiro chegou a escrever que topa uma biografia não autorizada de tipos como Sarney, sem dar-se conta que defendia a censura seletiva.

O segundo cometeu um pecado do qual teve que redimir-se pedindo desculpas: desmentiu ter dado uma entrevista, que o autor tinha gravado e, para vergonha do bardo, colocou no ar.

Dos defensores da causa, as vergonhas maiores ficaram para Paula Lavigne, que usou um programa de TV para cometer uma baixaria contra a colunista Bárbara Gancia, a pretexto de fazer uma analogia despropositada, e Marilia Pêra, que “monetizou” a questão com esta frase de rara infelicidade:

– É “doloroso” ver publicadas verdades indesejáveis sem compensação financeira ao biografado.

Ela quis dizer que com compensação financeira as “verdades indesejáveis” deixam de ser indesejáveis ou, com um pouco de boa vontade, devemos considerar que ela cometeu apenas uma impropriedade de linguagem? A dúvida e a vergonha alheia ficam pairando no ar.

Biografias honestas costumam ser narrativas históricas de fatos reais, que compõem as histórias de vida de personagens públicos. Se o autor relatar fatos que não aconteceram e incorrer em injúria contra o biografado, existem leis para reparar esses danos.

O que não há é lei que justifique a censura prévia. Afastem de nós esse cálice.

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Sandro Vaia é jornalista