Entre os anos de 1999 e 2000, período em que a legislação censora de 2002 ainda não estava em vigor, trabalhei dia e noite numa biografia de Fernando Sabino para a saudosa coleção Perfis do Rio, da editora Relume Dumará, cuja série inclui, entre dezenas de outras, uma bio autorizada de Chico Buarque escrita pela colega Regina Zappa.
A primeira pessoa que procurei foi, obviamente, Sabino, que aceitou um encontro no Café Ubaldo, no segundo piso da extinta livraria Letras&Expressões de Ipanema.
O então recluso autor estava no fundo do café e me recebeu com a costumeira cortesia, falou de seus tempos da Manchete e, sobre nosso assunto, abriu a conversa:
– Bloch, essa coisa de biografia de gente viva é um problemão. Por que você não espera que eu morra? Aí, faz sentido.
Apesar dessa restrição algo zombeteira, Sabino não se opunha a me ajudar, desde que acompanhasse, passo a passo, o trabalho.
– Claro que uma crítica ou outra sempre escapa numa biografia, mas minha vida está toda contada nos livros, o que você vai ouvir das pessoas são uns detalhes a mais.
Terreno subjetivo
Eu lera toda a obra de Sabino. Nas crônicas e contos, muitos fios podiam ser puxados, embora as diferentes edições expurgassem nomes que se tornaram indesejados. Dos três romances, “O encontro marcado” era já um retrato agudo dos anos de juventude em Minas, época na qual preocupações existenciais e políticas estavam no centro. “O menino no espelho” concentrava-se na memória de infância, ao passo que “O tabuleiro de damas”, espécie de novela autobiográfica, traçava o legado que Sabino gostaria que se cristalizasse e o representasse para sempre.
Meu livro, em sua opinião, deveria seguir este eixo e engordá-lo com mais dados, mas sem qualquer desvio no caminho traçado. Aceitei o trato com ressalvas tímidas sobre liberdade e recebi dele uma lista de contatos que o perfilado achava serem úteis para a pesquisa. Porém, nas semanas seguintes, percebi que na tal lista faltavam figuras centrais, ainda vivas, de sua trajetória, e as incluí no meu planejamento.
Uma delas era a última esposa de Sabino, Lygia Marina. Em contato futuro com a secretária do escritor, muito lealmente informei os nomes das pessoas com quem tinha conversado fora do escopo sugerido. Depois disso, verifiquei que o segundo encontro com ele – quando eu visitaria o mítico apartamento na Rua Canning – não estava mais marcado. Finalmente, recebi, de terceiras vias, o recado de que, em vistas de minha conversa com Lygia, eu me preparasse para ser cobrado judicialmente por qualquer tipo de injúria. Nunca mais vi Sabino.
O escritor teve, contudo, a hombridade de não tomar qualquer providência no sentido de impedir que o trabalho prosseguisse. Lygia, por sinal, foi só elogios ao ex-marido, não revelando nenhum detalhe que pudesse constrangê-lo. Trazia, apenas, dados interessantes sobre o período em que o mineiro entrou em estado de adoração pela ex-ministra Zélia Cardoso de Mello, e sobre a tristeza que se abateu sobre ele com as mortes de Paulo Mendes Campos, Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Rubem Braga, acontecidas em período aproximado da saraivada de críticas que recebeu pelo livro sobre Zélia, iniciando-se, aí, seu estado de reclusão.
O livro “Fernando Sabino/Reencontro” foi lançado em 2000. Recebeu boas críticas, foi saudado por acadêmicos e teve uma venda moderada. Chico Buarque (atualmente no centro do debate) me telefonou um dia para queixar-se de um trecho no qual Lygia defende que a canção “Lígia”, de Tom Jobim, era dedicada a ela. No telefonema, Chico garantiu que não era nada disso, pois fora ele mesmo que mexera na letra original, cujos versos eram outros. Agradeci a correção, prometi mudar tudo na edição seguinte, e o fiz.
De resto, Sabino jamais se queixou do perfil, no qual, sem a sua colaboração ou autorização, construí um jogo de mote e glosa com a palava “Encontro” para ditar a esfera de cada capítulo. Cerquei, em depoimentos de terceiros, textos e material de imprensa, os fatos de sua vida e de sua personalidade, “pelas beiradas”, trazendo à luz abordagens pelas quais até hoje muita gente me agradece.
Algumas, sobretudo no terreno subjetivo, só faziam engrandecer em humanidade o personagem perfilado, em que pesassem algumas sombras, ou, como ele dizia, “trompaços” que a vida de cada um reserva.
Ovos quebrados
Soube por terceiros que Sabino em essência gostou do livro, embora alguns trechos mais corrosivos o tenham aborrecido. Não encontrou ali, contudo, nenhuma ofensa à sua honra, apesar de não ser aquele, exatamente, o retrato que pretendia deixar à posteridade. Mas ele sabia que era apenas um entre tantos retratos que seu vulto inspira.
Anos depois, entrei em outra aventura, a de lidar, expressamente, com a memória coletiva de minha família. No livro, contrapus o real ao lendário, acreditando que uma verdade maior emerge quando o imaginário se soma ao rigor. Uns viram como declaração de amor abrangente em que luzes e sombras se cruzam. Outros viram como crime vil. Respeito ambos e a mim, que, na química do omelete, quebrei uns bons ovos. Sem arrependimento, aceito, em paz, as bênçãos e o castigo.
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Arnaldo Bloch é colunista de O Globo