O nome é censura. Mais especificamente, censura prévia. É quando uma obra é avaliada antes de se tornar pública e um grupo tem o poder de decidir se ela pode ou não ser lida. Esta é a discussão que um grupo de artistas liderados por Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil nos propõe. É uma discussão legítima. No meio do caminho, aos artistas se juntou gente séria e para lá de respeitável, como o filósofo e colunista do Globo Francisco Bosco. Em uma democracia, podemos levantar qualquer discussão. Eles sugerem que seria legítimo censurar para que a intimidade de alguns seja preservada. Então vamos conversar, mergulhar na questão. Só o que eles não podem é reinventar a língua. Fingir que não é de censura que falamos.
Nós, brasileiros, já pagamos um preço mais alto do que imaginamos por conta desta censura.
Porque a censura a biografias no Brasil já é fato. Estão proibidas há alguns anos. Não por lei. Mas como juízes o suficiente já proibiram a circulação de livros assim, editores os evitam a não ser que as famílias se comprometam a não processar. Biografias são, quase sempre, caras de fazer e exigem um esforço grande demais. Não são apenas as editoras que as evitam. Jornalistas também. Escrevi dois livros de história. Não encararia uma biografia, ainda mais de personagem do século XX para cá. Uma biografia honesta, afinal, sempre mencionará passos que o biografado, ou seus herdeiros, prefeririam não tornar públicos. Alguns, mesmo assim, consentem. São a exceção. É evidente: esconder aquilo que nos envergonha é humano. Esconder o que pode afetar outros, também.
Justiça mais ágil
O preço que a sociedade paga é alto. É impressionante que um personagem do quilate de Getúlio Vargas só esteja ganhando sua primeira biografia densa agora. Como entender o Brasil sem compreender Getúlio? Não basta. Onde está a grande biografia de Carlos Lacerda? De Juscelino Kubitschek?
Não são caso único. Entre as décadas de 1930 e 60, o Brasil teve uma grande geração de arquitetos. Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, os irmãos MMM Roberto. O Brasil como o compreendemos, hoje, nasce dos estudos de um pequeno grupo de intelectuais que vão de Mario de Andrade a Gilberto Freyre passando por gente como Sérgio Buarque, pai de Chico.
Conhecer a história da vida destas pessoas não é apenas um exercício de voyeurismo. É também compreender o mundo em que se formaram, o que permite uma leitura mais compreensiva de suas obras, de seus feitos. Ao mergulhar no universo de seu personagem, não é só ele que o biógrafo encontra. O retrato de uma época surge, retrato muito mais tangível porque está ligado à vida de alguém. Como essa pessoa vê, como ela reage, como sente.
Quando nossa intimidade é invadida, dói. Todos temos segredos. Aquelas coisas que nos causaria desconforto se tornadas públicas. Mas não é à toa que o Brasil é a única democracia ocidental que cogita formalizar a proibição a biografias não autorizadas. No conflito entre direitos, tão natural ao Estado de leis, frequentemente os direitos da sociedade se sobrepõem aos direitos do indivíduo.
Podemos e devemos ter uma conversa sobre o assunto. Que bom que, finalmente, estamos tendo essa conversa, já que antes a proibição informal era acompanhada do silêncio. De um lado está o desconforto, talvez até o sofrimento, de alguns. Do outro está o silêncio a respeito de quem somos. Sim: a nós, brasileiros, está sendo negada informação essencial para que compreendamos o que forma nossa identidade.
Falando claramente: Caetano importa. Caetano Veloso importa faz cinco décadas. Gil importa. Chico importa. Porque um país é feito por aqueles que escapam à curva mediana e interferem. Provocam. Atiçam. Transformam. Precisamos de gente como Caetano. Como Marighella. Como Lacerda. Porque não importa se vêm da direita, da esquerda ou de nenhum lado. E, quando esse tipo de gente surge, precisamos entender também o como e o por quê. Precisamos, ao menos, se desejamos nos compreender.
Precisamos também de uma Justiça mais capaz de indenizar quem o merece. Mas essa é outra discussão. É hora de encerrar a censura prévia no Brasil.
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Pedro Doria é colunista do Globo