Não fosse por um italiano nascido em 1511, ninguém saberia hoje que o pintor Paolo Uccello abandonou uma obra num mosteiro porque o abade lhe enchia diariamente de queijo. E Uccello, vejam só, odiava queijo. Não se saberia também que Polidoro de Caravaggio foi morto por um aprendiz que “gostava mais do dinheiro do mestre do que do próprio mestre”. Nem que Leonardo da Vinci, para quem era mais “estimável ser filósofo do que cristão”, considerava-se tão magnânimo que certa vez não aceitou um pagamento em moedas de baixo valor, dizendo: “Não sou pintor de vinténs”. Muito menos que Michelangelo era pouco cauteloso nas palavras. Para um menino, sobre quem lhe disseram que estava começando nas artes, retrucou: “Percebe-se”. Já para um amigo que apareceu vestindo uma roupa nova, disse: “Como estás bonito! Se fosses bonito por dentro tanto quanto se vê por fora, seria ótimo para a tua alma”.
Histórias como essas, que misturam detalhes da vida pessoal com descrições sobre como foram realizadas as obras de 133 artistas renascentistas, são conhecidas hoje pelo trabalho de Giorgio Vasari. Pintor, arquiteto e escritor, Vasari ficou conhecido como o primeiro biógrafo de artistas, como aquele que deu origem à história da arte ao publicar, em 1550, o livro “Vidas dos artistas”.
– O Vasari, quando gostava de alguém, era mais amoroso no relato. Mas, quando não gostava, tinha uma navalha que mostrava a vida do sujeito – diz Angela Ancora, crítica de arte e diretora da Escola de Belas Artes da UFRJ. – Acabou se notabilizando como o primeiro biógrafo de artistas, mas ele também foi um pintor sem relevância e teve uma importância grande por ter sido a primeira pessoa a fazer algo parecido com um salão de artes. Como era admirador de Michelangelo, organizou uma exposição para arrecadar fundos e poder levar, escondido, o corpo do artista de Roma para Florença.
Antes de Vasari, não havia modelos para biografias assim. Até então, conhecia-se o trabalho de nomes como o grego Plutarco e os romanos Tácito e Suetônio, que escreveram entre os séculos I e II relatos sobre imperadores, políticos ou figuras ilustres de suas épocas. O que Vasari fez de diferente foi traçar relação entre a obra e a vida do biografado, ainda de forma tímida em questões pessoais, mas já com detalhes que seriam fundamentais para se compreender melhor o porquê de algumas pinturas ou esculturas serem como são.
Vasari começava seus textos com uma breve introdução que fazia um resumo de como via seus personagens. Para tratar do pintor Botticelli, ele primeiro escreveu: “A natureza esforça-se por dar o talento a muitos e, em contraposição, lhes dá a negligência, porque eles, não pensando no fim da vida, muitas vezes adornam os asilos com sua morte assim como em vida adornam o mundo com suas obras”. Mais à frente, concluiu a biografia de um dos mais representativos pintores de Florença dizendo que ele “por fim, ficando velho e sem serventia, arrastava-se com duas muletas, não podendo fazer nada, doente e decrépito”. Era o tipo de descrição que não deve ter deixado seus herdeiros felizes.
Mosaico da Toscana
Por outro lado, com outros por quem tinha mais consideração, Vasari escolhia palavras amorosas. Depois de uma longa introdução em que explicava como os escultores antigos tinham “espíritos estúpidos e grosseiros”, ele abre uma exceção para Donatello, chamado de “agradável”, “amável”, “benigno”, “cortês”, “humilde” etc. etc. etc. No texto dedicado ao escultor florentino, Vasari diz que ele abdicou de uma propriedade rural recebida como presente por um admirador porque não queria se preocupar com questões mundanas como contas e as demandas dos camponeses vizinhos. “Preferia morrer de fome a ter de pensar nelas”, escreveu.
Sobre Da Vinci, considerado pelo autor como uma representação da “própria divindade”, Vasari escreveu a estratégia para fazer a modelo de seu famoso quadro “Mona Lisa” sorrir. Ele teria contratado bufões, “para eliminar aquela melancolia tão frequente na pintura e nos retratos”.
– Ele considerava a Toscana como uma região abençoada pelos céus, como se Deus tivesse mandado para lá os maiores gênios da Humanidade – diz a escritora Ivone Castilho Benedetti, que traduziu “Vidas dos artistas” para a versão brasileira lançada em 2011 pela editora WMF Martins Fontes. – Ele acabou ficando mais conhecido como biógrafo de artistas, mas acho que, no fundo, seu objetivo era outro. Ele queria fazer um mosaico de personagens para construir um retrato maravilhoso da arte renascentista. Mas, como ele tinha charme para escrever, uma sedução no texto, ficou célebre pelas biografias.
A intenção de glorificar seus personagens fica clara ao se deter sobre o título original da obra de Vasari: “Vidas dos mais excelentes arquitetos, pintores e escultores italianos, de Cimabue até nossos tempos”. Giovanni Cimabue, que viveu entre os séculos XIII e XIV, é o primeiro biografado do livro, aquele que nasceu “para trazer as primeiras luzes à arte da pintura”. O último é Michelangelo, único artista ainda vivo quando da publicação da primeira edição, simplesmente porque Vasari tinha um certo carinho por ele. Melhor dizendo, tinha veneração. “O Céu o mandou aqui embaixo para servir de exemplo na vida, nos costumes e nas obras, para que aqueles que se miram nele, imitando-o, possam aproximar-se da eternidade”.
– As descrições seguiam uma mentalidade diferente do que acontece hoje. Naquela época, jamais alguém se aventuraria em terrenos espinhosos, como a eventual homossexualidade de alguém. E todos eles se conheciam e sabiam. Mas eram tabus nos quais ninguém tocava – diz Ivone. – Houve, porém, um ou outro caso no livro de Vasari em que se pode enxergar algo distinto. Ele descreveu o que dizia ser o mau-caratismo do pintor Andrea dal Castagno e reproduziu a lenda de que ele teria matado o também pintor Domenico Veneziano. No entanto, segundo consta, Veneziano morreu quatro anos depois de Andrea dal Castagno. Mas é preciso entender que se vivia numa época em que leis, crimes e desvios tinham pesos e critérios diferentes dos de hoje. Vivemos numa sociedade em que tudo parece poder e dever ser transformado em espetáculo, em nome da liberdade de expressão.
Dois enfoques para a arte
Vasari morreu em 1574, aos 62 anos, com boa reputação e um padrão de vida bastante confortável. Sem querer glória para si – o próprio, apesar de pintor, não se colocou em “Vidas dos artistas” – é lembrado até hoje como o pai da história da arte e como precursor de gerações de biógrafos que se seguiram pelos séculos. Mais de 460 anos após seu livro ser lançado, é inimaginável para todos aqueles que estudam a arte renascentista não ter os relatos de Vasari.
– Há dois enfoques possíveis para se entender o trabalho de um artista. A obra em si já tem uma carga como objeto, que independe da vida de quem a fez. Caravaggio chegou a matar um homem, mas ele foi o maior barroco que nós tivemos. A obra de Caravaggio fala do artista, que passa por cima da ética e da moral – explica Angela Ancora. – Mas outra possibilidade é observar a vida de quem fez aquela obra, para agregar informações e trazer subsídios que ajudam na compreensão do trabalho. São dois enfoques, e nenhum é mais importante do que o outro.
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André Miranda, do Globo