Reunidos na organização Procure Saber, importantes nomes da nossa música defendem que se continue a proibir biografias não autorizadas. Hoje, a proibição resulta de uma interpretação precária do art. 20 do Código Civil. Um dos argumentos desses músicos é que não se pode permitir que apenas o autor tire vantagem financeira da biografia.
Ou ambos lucram, ou o autor não pode comercializar a obra. Mas essa interpretação da lei traz risco enorme à cultura brasileira. Mais diretamente, aliás, afetaria os próprios músicos que a defendem.
O artigo 20 fala de “escritos”, mas não só. Inclui “transmissão da palavra”, “publicação”, “exposição” e “utilização da imagem”. Se o Código proíbe alguma coisa, essa proibição não se aplica somente a biografias. Um discurso — a transmissão da palavra ao vivo. Uma matéria de jornal — publicação. Uma homenagem a alguém — utilização da imagem.
Quem invoca o art.20 precisaria também estar disposto a aplicá-lo aos muitos outros tipos de expressão que ele abrange.
Partilha de lucros
Músicas gravadas e tornadas públicas por meio físico ou virtual preenchem todos os requisitos do artigo 20. São “transmissão da palavra”. São “publicações”. Mais ainda, músicas sobre pessoas reais e específicas são uma exposição da pessoa e utilizam sua imagem.
Com “Fio Maravilha”, por exemplo, Jorge Ben Jor expôs e divulgou (e imortalizou) o jogador do Flamengo. E o próprio Caetano construiu o cenário de sua “Sampa” com as imagens de outros artistas de carne e osso, como Rita Lee e os Novos Baianos.
Para a Procure Saber, não seria justo que “só os biógrafos e seus editores lucrem com isso e nunca o biografado ou seus herdeiros”. Para evitar essa injustiça, portanto, deveríamos exigir sempre a autorização prévia da pessoa retratada naquela expressão artística, cultural, literária ou musical. Ou de seus herdeiros.
Mas onde isso nos levaria se o artigo 20 fosse aplicado de forma coerente a todas as formas de expressão? Caso sua mãe já houvesse falecido quando compôs a tocante “Lady Laura”, Roberto Carlos precisaria pedir autorização de seus irmãos. A “Sampa” de Caetano só poderia ser povoada por personagens que consentissem em ser retratados.
No auge da ditadura militar, nos anos 70, Jorge Ben Jor sofreu um processo judicial por não ter pedido autorização do jogador Fio Maravilha antes de lançar a sua famosa música. O pedido foi rechaçado. Nem mesmo naquela época se ousou restringir a tal ponto a liberdade de expressão cultural.
Pelo que exigem agora alguns músicos brasileiros, deveríamos ter obrigado Raul Seixas a conseguir autorização dos herdeiros de Al Capone. Ou exigido que o grupo Los Hermanos fizesse primeiro um contrato de partilha do lucro dos direitos autorais com a estudante retratada em “Anna Julia”. E o que dizer da música “Clint Eastwood”, do grupo Gorillaz? Seria necessária a autorização do ator americano para divulgar a música no Brasil?
Sem fundo
Os músicos do Procure Saber deixaram claro que, pelo artigo 20, opõem-se a manifestações culturais não autorizadas apenas quando são comercializadas. Se divulgadas gratuitamente, não haveria problema.
Mas a proibição do artigo 20 é mais insaciável do que pensam. Ela não tem fundo. Estariam dispostos a abrir mão dos direitos autorais de todas as suas músicas que envolvam a imagem de uma pessoa real?
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Diego Werneck Arguelhes e Ivar A. Hartmann são advogados