Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O público e o privado III

Gostaria que os defensores incondicionais e peremptórios da liberação das biografias se dispusessem a encarar as complexidades de questões , em vez de ficar repisando a tecla da acusação de censura

Recentemente, uma nova biografia sobre Marx afirma que o filósofo teria tido um filho não assumido com a empregada que trabalhava em sua casa. É um fato — se for mesmo um fato, como tudo indica — significativo e de interesse geral: o influente pensador da luta de classes comportando-se como um senhor de engenho. No mínimo, ensina alguma coisa sobre as contradições entre teoria e práxis. Agora imaginemos que Marx estivesse vivo. Pergunto: que ele seja uma “figura pública” deve implicar que o Estado assegure o direito a que ele tenha sua vida devassada e devastada em nome do interesse coletivo? Tamanho poder da coletividade sobre o indivíduo é mesmo fortalecedor do espírito democrático?

Gostaria que os defensores incondicionais e peremptórios da liberação das biografias se dispusessem a encarar as complexidades de questões como essas, em vez de ficar repisando a tecla da acusação de censura aos que propõem discutir o mérito. Ao contrário, o debate na imprensa, quase sem exceção, tem sido marcado por uma recusa a efetivamente aprofundar os problemas, tomando como decidido o que justamente está por se estabelecer e condenando até moralmente os que ousam contestar o suposto consenso ou examinar o mérito em profundidade antes de tirar conclusões sobre ele. De minha parte, continuarei aqui a desconstruir argumentos reducionistas e juízos maniqueístas.

Os defensores da liberação argumentam que o biografado pode reivindicar reparação na Justiça em casos de calúnia e difamação. Mas isso não dá conta do problema. No exemplo citado acima, não é a calúnia o problema, e sim a verdade, cujo efeito é devastador para o indivíduo. Esse efeito é realmente civilizatório, obra de uma sociedade aberta e democrática?

Honestidade intelectual

A palavra mais usada pelos defensores da liberação é “censura”, e sua comparação mais frequente é aquela entre uma sociedade que protege a privacidade do indivíduo e sociedades ditatoriais. Contudo, sociedades ditatoriais são justamente aquelas que pretendem anular o indivíduo em nome do coletivo. Censor, por sua vez, é o poder que pretende sufocar os indivíduos de participarem livremente da esfera pública, contestando seu governo e interferindo nos seus caminhos. Ora, resta por estabelecer se a vida privada de um indivíduo considerado uma “figura pública” deve ser ela mesma considerada pública. Antes que se estabeleça esse difícil ponto, falar em censura é uma petição de princípio.

Um ponto importante e lamentável: alegar que uma figura pública, meramente pelos benefícios que isso lhe traz (reconhecimento e, em alguns casos, dinheiro), deve arcar com o ônus da expropriação de sua dimensão privada e do escrutínio moral da coletividade — isso não é argumento jurídico, nem filosófico, isso é pura vingança imaginária. Seu motor é o ressentimento. Diante disso, é preciso evocar a célebre frase de Nietzsche: “É preciso proteger os fortes contra os fracos”. Não estou dizendo que essa é a única razão para se defender a exposição plena de um indivíduo à coletividade. É apenas a mais sórdida.

Não concordo com o também repisado argumento de que políticos não devem ser poupados. Políticos devem ter suas responsabilidades imputadas por seus feitos públicos, e não privados. Uma aventura sexual do presidente americano Clinton o expôs, com sua família, a uma das maiores humilhações públicas que alguém pode sofrer e colocou a nação inteira em crise. De novo: o que há de liberdade e democracia nisso? (Em tempo: casos como o de DSK devem ser considerados públicos, pois, penso, perde-se o direito à privacidade no momento em que se comete uma infração à lei.) Não concordo ainda com a separação que alguns, como Caetano Veloso, fazem entre artistas e políticos. Defender direitos diversos para uns e outros é inadmissível por definição, além de configurar um juízo moral prévio e simplista que coloca uns como bons e outros como maus. Isto posto, noto que Caetano escreveu aqui uma coluna rara, no presente contexto, por sua ponderação, e com cujo sentido geral me identifico: “o direito à intimidade deve complicar o de livre expressão”.

Resta portanto a ser aprofundada uma discussão sobre os limites entre o privado e o público, a vida e a obra e o conflito de interesses entre o indivíduo e a coletividade. Não li quase ninguém na imprensa disposto a ou capaz de discutir esses pontos em profundidade. O debate tem sido mais profundo alhures: pensadores como Alberto Pucheu, Roberto Correa dos Santos, Pedro Duarte, Fred Coelho (a maior parte tende a discordar de mim) vêm formulando os problemas com a necessária profundidade e a honestidade intelectual de se considerar como ponto de partida a existência de um problema, não de um fato consumado.

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Francisco Bosco é colunista do Globo