O bebê de Salomão
A liberdade é uma só e não pode ser retalhada como o bebê de Salomão, aquele que quase foi repartido a golpe de espada entre as duas mulheres que reivindicavam sua maternidade. Estou ao lado dos que se opõem ao artigo do código civil que prevê para biografias a autorização prévia do biografado. A modificação da legislação no sentido de permitir que biografias sejam publicadas sem necessidade de autorizações é inevitável e natural numa democracia que se aperfeiçoa, e a intenção de suprimi-la não causaria celeuma caso o grupo de artistas que forma o movimento Procure Saber não tivesse se manifestado por sua permanência no código civil.
Édipo
A admiração, o respeito e a gratidão que sinto por Roberto, Erasmo, Djavan, Mautner, Chico, Caetano e Gil são incondicionais. Atribuo a eles grande parte da construção da minha visão de mundo, e pesa-me discordar publicamente de suas posições. O que gera discussão é ver aferrados a uma postura conservadora artistas historicamente comprometidos contra a censura e que sempre se pautaram pelas liberdades e ousadias estéticas e comportamentais. O que não justifica sua vilificação por parte da imprensa, tachando-os – de forma desrespeitosa e ressentida – de “censores” intolerantes. Não se pode resumir uma questão relevante a uma simples queda de braço entre celebridades e jornalistas. Não se trata de uma picuinha. Atentemos para não perder o foco do que está em jogo.
Controle absoluto
O ponto central da discussão é a contraposição entre liberdade de expressão e direito à privacidade. Embora reconheça pontos plausíveis na argumentação do Procure Saber, não concordo que para preservar o direito à privacidade seja admissível relativizar ou cercear a liberdade de expressão. Em democracias mais aprimoradas, liberdade de expressão e direito à privacidade caminham juntos, ao passo que, em regimes intolerantes e totalitários, quanto mais se reprime a liberdade de expressão, mais se restringe o direito à privacidade. Querer reprimir a liberdade de expressão em nome da preservação do direito à privacidade é dar um tiro no pé. O controle absoluto da própria história não ocorre numa sociedade livre e democrática. Controle absoluto, só em regimes totalitários, e sempre como primazia do Estado e não dos indivíduos.
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Tony Bellottoé músico e colunista do Globo