Coincidência ou não, a placa do Audi oficial preto que trouxe a chanceler alemã Angela Merkel para a cúpula da União Europeia em Bruxelas, na quinta-feira, era 007. É provável que ela ainda estivesse lívida e com a contrariedade em combustão diante dos indícios de que também o seu telefone celular caíra na rede da Agência de Segurança Nacional americana.
Vale lembrar que Merkel já era uma adulta de 35 anos quando o Muro de Berlim foi derrubado em 1989 e implodiu a Alemanha Oriental comunista onde ela nascera.
Viveu portanto mais da metade da vida sob um dos regimes que maior controle exerceu sobre os seus cidadãos. Também por isso, tratou de deixar claro que sua tolerância com a pantagruélica bisbilhotagem eletrônica praticada pelos Estados Unidos acabou.
Merkel estava com o rosto mais amarfanhado do que o habitual ao condenar os maus modos do país aliado. “Nem tudo o que é tecnicamente possível deve ser feito”, declarou ao chegar em Bruxelas. “É preciso sempre se perguntar quais são os riscos inerentes aos meios que escolhemos. E os meios não justificam o fim. Espionagem entre aliados e amigos não se faz. Os fatos são os fatos.”
Vinte e quatro horas antes, assessores teriam lhe mostrado um documento do governo americano contendo a anotação do seu número de celular.
Única condenação
Na verdade, como Merkel e todos os chefes de governo bisbilhotados sabem, espionagem entre países aliados sempre existiu e sempre continuará existindo. O que nunca impediu os serviços de inteligência de cooperarem, em graus variados.
No caso específico da Alemanha, costuma-se dizer que os serviços secretos dos antigos Aliados (Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e ex-União Soviética, países da aliança que derrotou o nazismo na II Guerra) espionam tudo desde que o país começou a redigir os primeiros parágrafos de sua nova Constituição, em 1948.
Só que esse conceito de Aliados com “a” maiúsculo atendeu à geopolítica e às guerras do século XX, e tem pouca serventia para explicar o ultraje geral provocado pelas operações clandestinas da NSA de hoje.
Ademais, países aliados, seja com “a” maiúsculo ou minúsculo, nem sempre são países amigos. E aliados de hoje podem vir a ser adversários ou inimigos de amanhã. Portanto, espionar é do jogo.
O que não estava previsto era o escopo pantagruélico, desordenado e descontrolado dos programas de espionagem adotados pelos Estados Unidos após os ataques terroristas do 11 de setembro de 2001.
E muito menos que eles viessem a público, quase em tempo real – o que é muito diferente de ler documentos secretos igualmente constrangedores, porém datando de meio século atrás.
Ao declarar Guerra Global ao Terror, o governo americano deletou fronteiras e passou a olhar o mundo como um território a ser vigiado na caça ao inimigo.
Esta semana soube-se que a NSA havia monitorado 70 milhões de comunicações digitais na França; na Alemanha, somando-se telefonemas, e-mails, fax e chats bisbilhotados, foram 500 milhões.
Documentos vazados anteriormente já haviam revelado a captura de metadata nos Estados Unidos e da espionagem no Brasil e México – parcela ainda ínfima do que o ex-analista da NSA Edward Snowden ainda tem para vazar.
Desde a estrepitosa fuga de Snowden e o surgimento do primeiro lote de documentos, Barack Obama procura justificar o programa de espionagem com um dado que vinha sendo repetido como mantra por políticos dos dois partidos: “Sabemos que pelo menos 50 ameaças de atentados – não só nos Estados Unidos, mas também na Alemanha – foram abortadas graças a essa coleta de informações. Vidas foram salvas.”
O discurso terá de ser alterado a partir desta semana. Segundo revelou o portal de jornalismo investigativo Pro Publica, um documento oficial sigiloso credita à espionagem apenas ter “contribuído em 54 ocasiões para melhor compreensão das atividades terroristas – em muitos casos possibilitou a interrupção de potenciais eventos terroristas”.
De concreto mesmo, a vasta teia resultou na condenação de um único indivíduo, residente em San Diego – por ele ter feito uma remessa bancária de US$ 8 mil à Somália em apoio a um grupo terrorista.
Questão de fundo
Autoisolado de seus aliados externos e entrincheirado de seus inimigos internos, Obama vive na Casa Branca um dos momentos mais neurastênicos de poder presidencial da história americana.
De um lado, para perplexidade do resto do mundo, esteve de mãos amarradas e sem ação no recente impasse legislativo que quase levou o país ao calote e manteve o governo da maior potência do mundo fechado por duas semanas.
De outro lado, Obama exerce todos os poderes de exceção do Executivo herdados do antecessor George W. Bush com base no Artigo 2 da Constituição dos Estados Unidos, e adaptados aos tempos modernos.
As operações de espionagem no exterior, por exemplo, sequer precisam do aval da Corte de Monitoramento de Inteligência Estrangeira – basta a NSA prestar contas para si mesma e para o Executivo.
Ela cai na mesma categoria da lista de inimigos a serem mortos na Guerra contra o Terror. Esses assassinatos extrajudiciais, realizados preferencialmente por aviões não tripulados, também são de responsabilidade final do ocupante da Casa Branca.
Para a alemã Rena Tangens, diretora da organização DigitalCourage que defende os direitos de proteção a dados pessoais no ciberespaço, este é o momento do basta. “Se aceitarmos esses métodos de espionagem em breve vamos aceitar também as informações obtidas através de tortura em Guantánamo ou no Paquistão. Será o fim do estado de direito”, diz ela.
A questão, no fundo, não é a da falta de confiança dos Estados Unidos nos seus aliados e países amigos. A pergunta é se esses aliados e amigos ainda podem ou devem ter confiança nestes Estados Unidos à deriva.
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Dorrit Harazim é jornalista