Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Reinvenção da existência

No momento em que as biografias suscitam amplo debate, é importante analisar o interesse cultural de publicá-las. Textos sobre a vida de filósofos e artistas, por exemplo, iluminam aspectos de suas obras, mas, como todo trabalho do gênero, devem ser encarados como uma reinterpretação, e não verdade absoluta.

Importa aqui refletir e testemunhar sobre o interesse cultural de escrever e publicar biografias hoje. Dada a complexidade da questão, vou recorrer a alguns exemplos que se relacionam sobretudo ao campo da filosofia e da literatura.

Começarei com um caso que me diz diretamente respeito. Por ter organizado o último evento de que Jacques Derrida participou, o colóquio internacional de 2004 sobre sua obra, no Rio de Janeiro, parceria da Universidade Federal de Juiz de Fora e do Consulado da França, fui convidado a dar um testemunho para o trabalho biográfico de Benoît Peeters sobre Derrida (1930-2004), que estava se iniciando em 2007.

Refleti muito sobre o que seria relevante ou não narrar, principalmente por ter convivido com o pensador num momento de grande fragilidade física. A biografia foi publicada em 2010 e recebeu resenha extremamente elogiosa da psicanalista e historiadora Elisabeth Roudinesco no “Le Monde”.

Luciana Villas-Boas, então no comando editorial do grupo Record, convidou-me a prefaciar a tradução do livro, cuja edição eu lhe havia recomendado. “Derrida” acabou saindo neste ano, pelo selo Civilização Brasileira. O maior elogio que posso fazer ao livro é que contém muita informação importante mesmo para um estudioso de longa data do autor.

Peeters realizou uma pesquisa de fôlego durante três anos, lendo uma massa documental gigantesca e entrevistando uma centena de pessoas na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil. É o tipo de abordagem que historiadores, jornalistas, críticos, teóricos e escritores desempenham com competência.

No entanto, há um episódio no volume bastante desagradável. Trata-se de um relacionamento extraconjugal, mas que era do conhecimento da família de Derrida, bem como de grande parte do meio intelectual parisiense; era, por assim dizer, um segredo de Polichinelo. Peeters poderia tê-lo ignorado, mas preferiu narrá-lo com todas as letras, porém igualmente com grande senso ético.

Qualquer desconfiança que o leitor possa ter quanto à validade de narrar o episódio se dissipa quando um dos filhos de Derrida conta sua versão dos fatos, com algum sofrimento, mas sem fazer nenhum julgamento moral. Daí se pode concluir que foi muito salutar não omitir essa informação, tanto por fidelidade à história, quanto –em nome dessa fidelidade– para evitar a hagiografia, ou seja, transformar aquele que foi considerado o filósofo mais influente da segunda metade do século 20 num santo.

Com isso, tem-se uma noção plena da figura humana de Derrida, situando-a em seu contexto. A história de um grande homem ou de uma grande mulher não é algo estritamente privado, mas um bem a ser compartilhado por todos os agentes culturais.

Confissões 

Do ponto de vista teórico, Jacques Derrida integra o grupo daqueles filósofos que, como santo Agostinho, Rousseau, Nietzsche e Benjamin, em algum momento de seu percurso, narraram as próprias memórias e/ou fizeram íntimas confissões.

Num de seus textos mais delicados, “Circonfissão” (Zahar), juntando saber e afeto, Derrida reflete, em diálogo com textos de santo Agostinho, sobre o instante em que sua mãe está em coma, após o que virá a morrer. Trata-se de uma elaboração filosófica só comparável, literariamente, ao luto materno de Barthes, consignado no “Diário de Luto” (Martins Fontes), contraface do igualmente autobiográfico “Roland Barthes por Roland Barthes” (Estação Liberdade).

Rousseau precisou escrever suas “Confissões” (Edipro), entre outras coisas, como um documento de autodefesa contra seus detratores. Benjamin registrou suas memórias em textos autobiográficos de extrema beleza e relevância política, como os de “Rua de Mão Única” (publicado originalmente pela Brasiliense, teve nova tradução neste ano pela Autêntica).

O que esses casos filosóficos e literários mostram é que, para esses autores, tomar a própria biografia como tema, autobiografando-se, tornou-se matéria indispensável para o trabalho reflexivo e ficcional. Longe de serem registros anódinos, há um entrecruzamento intensivo entre vida e obra.

Todavia não se trata de um empirismo determinista. Acima de tudo, porque a própria vida nunca se reduz a um mero alinhamento de fatos que podem ser um dia resgatados pelo próprio sujeito ou por um terceiro, o famigerado –e fundamental– biógrafo, configurando uma identidade monolítica.

O que em geral não se entende muito bem é que nem mesmo um biógrafo lida com os fatos em si: estes já aconteceram e pertencem ao passado, ainda quando são recentes. O que resta sempre são vestígios, documentos que servem para rastrear os acontecimentos: cartas, documentação pessoal, depoimentos de toda ordem. Mesmo o testemunho autenticado do personagem biografado e o das pessoas que com que ele tiveram contato entram como registros e não como fatos em si.

Uma bio-grafia (vida + escrita) é, portanto, o texto de uma existência que precisa ser reinterpretado de múltiplas maneiras.

O problema das biografias oficiais (cognominadas “chapa-branca”) é a reivindicação de servirem como fonte exclusiva. São necessárias muitas versões para se chegar à verdade histórica, se jamais isso for possível. Pois, como demonstra Maria Helena Werneck, com sua criteriosa leitura das biografias de Machado de Assis, em “O Homem Encadernado” (Eduerj), cada biógrafo é portador de uma vontade de verdade que nunca se realiza de todo.

Quem conhece os textos derridianos sabe que seu pensamento é, sobretudo, a desconstrução da metafísica ocidental –do etnocentrismo europeu, mas não só este, de matriz filosófica, que Derrida lê por meio de categorias como “logocentrismo” ou “falogocentrismo” (quando na leitura se incluem questões de gênero).

Ora, um dos aspectos que o trabalho de Peeters mais ilumina é como o fato de o pensador ser originário de um território dito “periférico” (noção hoje mais do que questionável), a Argélia da época colonial, lhe proporcionou uma visão singular da cultura ocidental.

Essa é a grande diferença entre a abordagem tradicional da questão biográfica e os estudos mais avançados: a vida de um filósofo ou de um artista jamais deve ser tomada como um conjunto empírico e fechado de ocorrências, mas como uma textualidade a se reinterpretar sob vários ângulos e com toda a liberdade.

Autoficção 

Isso se torna mais relevante hoje, quando prolifera no mundo, em particular no Brasil, um procedimento inventivo nomeado “autoficção”, por meio do qual vida e obra se nutrem explicitamente, muitas vezes dando margem a conflitos.

Inaugurada por Serge Doubrovsky nos anos 1970 na França, essa prática tem sido desenvolvida por autores nacionais como Silviano Santiago, João Gilberto Noll, Cristovão Tezza, Ricardo Lísias, Sérgio Sant’Anna e Tatiana Salem Levy.

Como autor de ficção, recorri a esse motor, mas não sem muitos questionamentos, temendo que ele fosse compreendido como egolatria, e não como um dispositivo perturbador que dificulta a identificação dos limites entre ficção e realidade, levando a transgressão autobiográfica às últimas consequências. Isso ocorre quando, por exemplo, autor, narrador e personagem têm o mesmo nome, como no caso de Doubrovsky.

O interesse nos cruzamentos entre a obra de um ficcionista ou poeta e sua biografia independe, porém, da explicitação, na literatura, dos fatos da vida de um autor.

Assinalaria ainda que a história de Clarice Lispector, uma de nossas escritoras mais em evidência no Brasil e no exterior, já conta com três investigações biográficas de peso.

A pioneira e essencial é a de Nádia Battella Gotlib, “Clarice, uma Vida que se Conta” (Edusp), em que a sequência de uma vida é submetida a refinada leitura em cotejo com escritas ficcionais. A segunda é o trabalho bastante informativo de Teresa Monteiro, “Eu Sou uma Pergunta”(Rocco). A terceira é a do norte-americano Benjamin Moser, “Clarice,” (Cosac Naify), que parte de muitas das informações das outras biógrafas, mas desenvolve sua própria análise, pautada também pela obra da autora.

Ao escrever, dois anos atrás, o ensaio “Clarice Lispector: Uma Literatura Pensante” (Civilização Brasileira), eu me servi pontualmente desses três trabalhos, cruzando-os com questões filosóficas e artísticas. Embora a biografia não fosse meu tema principal, algumas das afirmações que fiz só foram possíveis porque, antes de mim, especialistas realizaram um árduo e inestimável trabalho.

Por último está o caso, a meu ver, mais significativo quando se fala de biografia, autobiografia e, agora, autoficção.

Nos anos 1990, a filósofa Sarah Kofman realizou seminários a que assisti na Sorbonne sobre o “Ecce Homo” de Nietzsche, resultando em dois alentados volumes, publicados pela Galilée. Sua abordagem deixava claro como e por que o próprio Nietzsche, diante da inépcia de seus contemporâneos, se viu na obrigação de reler sua obra à luz de sua vida –e vice-versa.

Embora não fosse biógrafa, Kofman explicita, em sua reflexão, o que o próprio texto de “Ecce Homo” expunha com todas as letras: a vida de um filósofo, a despeito de um antigo dogma em contrário, não tem nada de irrelevante.

A existência segue em paralelo com os textos de maneira autônoma, mas fornecendo muito mais material para reflexão do que poderia sonhar nossa eventual má vontade em relação ao assunto.

A desconstrução necessária do clássico gênero da biografia começaria não por desqualificá-la, mas por retirar o estatuto de verdade absoluta de que a maior parte das vezes ela é investida, liberando assim seu valor, o de reinvenção de uma existência.

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Evando Nascimento, 53, é ensaísta, professor universitário e escritor. Autor do livro de ficção “Retrato Desnatural” (Record) e de diversos estudos sobre Derrida