O jornalista Oswaldo Mendes, também biógrafo de Plínio Marcos, contestou na “Folha de S.Paulo”, no artigo “Falhas de memória“, o endosso que eu dei aqui à afirmação de Chico Buarque de que a entrevista que ele concedeu ao jornal “Última Hora”, dirigido por Samuel Wainer, em 1974, não autorizava inferir que ele tivesse boas relações com o mesmo jornal em 1970. Nesse ano, uma seção do jornal noticiara que Chico fazia críticas ao papel desempenhado por Caetano e Gil, então exilados na Inglaterra. Paulo Cesar de Araújo, em “Eu não sou cachorro, não”, cita as afirmações como verdadeiras, e Chico, desmentido quanto à entrevista sobre Roberto Carlos, sustenta que o jornal não era uma fonte confiável, na altura de 1970, e que estava ligado aos vieses mais obscuros da ditadura. A discussão é um meandro da volumosa polêmica das biografias. Sem pretender alongá-la, quero esclarecer a parte que me toca, e fazer justiça aos reparos de Oswaldo Mendes.
A afirmação de Chico Buarque de que, em 1974, dera sim uma entrevista, com gosto, a Mario Prata, me soou familiar, e me remeteu à redação fervilhante do jornal reassumido nesse ano por Samuel Wainer, onde eu, por coincidência, fui colunista. Wainer foi a figura histórica da imprensa pró-Getúlio nos anos de 1950, quando dirigia a “Última Hora” carioca. Exilado depois do golpe de 1964, voltou ao Brasil dez anos depois. A “Última Hora” tinha sido incorporada ao Grupo Folha, e Wainer foi convidado para dirigir o jornal, “num gesto de civilidade” de Octavio Frias de Oliveira, segundo relata Oswaldo Mendes, que devolveu simbolicamente ao jornalista a “Última Hora” à qual ele estava historicamente associado.
Eu fui convidado para escrever uma coluna semanal sobre música, junto com outros estudantes de pós-graduação que se iniciavam na crítica de ficção e de ensaio, indicados, a pedido de Wainer, por Antonio Candido. O escritor Mario Prata era, para mim, uma figura marcante na redação, muito aberta aos temas culturais e aos artistas. Oswaldo Mendes era também editor, creio que de um outro caderno. No primeiro encontro, Samuel Wainer me disse que eu teria toda a liberdade crítica no campo estético, ressalvando com humor, num exemplo extremado, mas em nome do bom senso, que improváveis ataques diretos às propriedades do Grupo Folha, como a Estação Rodoviária de São Paulo, certamente não seriam bem-vindos. Quando Tom e Elis estrearam seu show, ele me pediu um ensaio especial sobre Jobim, independente da pauta do momento, frisando elegantemente a independência do meu juízo sobre o compositor. Carismático, sedutor, transitando entre a política, a cultura e a boêmia, ao modo de certos personagens quase glauberianos do transe dos anos de 1950 e 60, e apostando na qualidade da crítica cultural, conferiu ao jornal a confiança empática a que Chico Buarque se refere, e o certo interesse que despertou no período, mesmo sendo um jornal secundário na ordem das coisas.
Guerra civilizada
É esse clima que eu reconheci na afirmação de Chico Buarque, quando disse que confiava na sua entrevista a Mario Prata em 1974, mas não no jornal de 1970. Contribui para a minha impressão retroativa de que esse foi um período excepcional o fato de que a aventura durou pouco: escrevi meu primeiro artigo em junho de 1974, e o último em janeiro de 1975, quando Samuel Wainer já não era mais o editor da “Última Hora”, substituído pelo colunista social do jornal (se eu estiver errado, Oswaldo Mendes me corrija). O período em questão durou poucos meses.
Oswaldo Mendes conta que trabalhou na “Última Hora” desde 1969, e rejeita enfaticamente a afirmação de que o jornal estava ligado aos porões da ditadura, que considera infamante para aqueles que trabalharam nele. Cita Plínio Marcos como um colaborador, já no período anterior à gestão editorial de Samuel Wainer, assim como o poeta português, exilado no Brasil, João Apolinário. Diz que a redação da “Última Hora” abrigou em 1971 a formação da Associação Paulista de Críticos de Arte. E ironiza a minha precipitação sapiente ao corroborar a ideia da “diferença radical” entre o jornal de 1970 e o de 1974.
De fato, eu não conhecia os antecedentes a que Oswaldo Mendes se refere, nem sabia que ele, a quem respeito, trabalhava no jornal desde antes do período em pauta. Que qualquer alusão pessoal a relações com a ditadura fique totalmente dissipada. E se a cultura é uma guerra civilizada de versões, como é o caso, a história, por isso mesmo, não é da autoria de ninguém, embora da responsabilidade de cada um que escreve. Eu continuo respondendo por essa parte: a derradeira “Última Hora” de Samuel Wainer foi um período especial do jornal, e terminou bruscamente. Por motivos que Oswaldo Mendes, digo-o sinceramente e sem malícia, deve saber melhor do que eu.
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José Miguel Wisnik é colunista do O Globo