“Sonho Grande”, no cálculo que fazia o editor Hélio Sussekind antes de colocá-lo nas livrarias, chegaria a 15 mil exemplares vendidos na projeção mais otimista. Bateu os 120 mil em seis meses a história de Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles, Beto Sicupira e seu banco Garantia, contada pela jornalista de finanças e negócios Cristiane Correa. Virou um best-seller nacional de não ficção.
Relatos biográficos como os da presidente Dilma Rousseff e do ator Reynaldo Gianecchini ocuparam as listas de mais vendidos com tiragens mínimas de 30 mil exemplares, sinal de que há interesse do leitor. Mas é “Eike”, 200 mil exemplares quando o empresário vivia seu esplendor, o maior sucesso do selo Primeira Pessoa, criado há dois anos pela Sextante para, como anuncia, “narrar a trajetória inspiradora de brasileiros vitoriosos”.
Não se espera que um selo com tal linha editorial – os homenageados ficam a par dos projetos – tenha já enfrentado impasses por causa da atual legislação brasileira, que, além de tornar inviáveis as biografias não autorizadas, leva a pedidos de indenização e à retirada de títulos das livrarias.
Pois foi o que ocorreu com a história do lutador Anderson Silva, em depoimento a Eduardo Ohata. Assim que apareceu nas livrarias, para coincidir com a data de uma grande disputa, teve de ser recolhida. Alguém cujo nome aparecia no livro se sentira prejudicado. Com a retirada do trecho contestado, o livro voltou à praça. “Esperávamos vender 100 mil exemplares, perdemos o pico de vendas e tivemos prejuízo”, lamenta Sussekind. O caso ainda segue na Justiça.
O nicho de biografias e livros-reportagem, constrangido por uma lei que vigora desde 2002, cresce no país na medida do risco que as editoras aceitam bancar. Contra e a favor da restrição, um debate nacional ganhou jornais, blogs, redes sociais e TV nas últimas semanas. Em defesa da liberdade de expressão, de um lado, estão editores e autores. De outro, pelo direito à privacidade e ao uso da imagem, estrelas da MPB representadas pela Associação Procure Saber – em vídeo, desde a terça-feira, o grupo começou a divulgar sua posição. O Valor tentou ouvi-los até o fechamento desta edição.
“Tudo bem”
“Enquanto a lei não mudar, não voltarei a escrever uma biografia”, promete Mário Magalhães, cujo “Marighella” acaba de vencer o Jabuti dedicado ao gênero neste ano. “Autores têm abandonado projetos. Entre numerosos personagens, deixaram de ser biografados um jogador de futebol e um dramaturgo.”
“O que está sob ameaça não é apenas o gênero biográfico”, alerta Lira Neto, que lançou o segundo volume de sua trilogia “Getúlio”. “A rigor, impede-se a própria narrativa histórica. Qualquer indivíduo, dizendo-se ofendido e violado em sua privacidade, pode bloquear um livro de história, uma tese acadêmica publicada em forma de livro, uma reportagem de jornal, um documentário audiovisual.”
A lei em questão são os artigos 20 e 21 do Código Civil. Como está dito: “salvo se autorizadas […], a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”. Editoras do país encaminharam uma Ação Direta de Inconstitucionalidade ao Supremo Tribunal Federal, ainda sem previsão de julgamento. Antes, por decisão da ministra Carmen Lúcia, ocorrerá audiência pública com representantes de todos os lados da discussão nos dias 20 e 21.
Em meio ao debate sobre biografias, há quem anteveja um novo impasse. Pelo projeto de lei para regulamentar a profissão de historiador, já aprovado no Senado e agora no Congresso, o magistério e a pesquisa seriam facultados apenas a graduados ou pós-graduados em história. A redação imprecisa dos artigos leva a interpretações como a de que livros de história serão exclusividade dos diplomados da área.
Um dos que alertam sobre os prejuízos da reserva de mercado, Roberto de Andrade Martins, historiador da ciência com formação em física, professor aposentado da Unicamp e hoje na Universidade Estadual da Paraíba, criou o blog www.profissao-historiador.blogspot.com.br para agrupar aqueles que são contrários ao projeto, entidades do exterior incluídas. Seu “Becquerel e a Descoberta da Radioatividade: uma Análise Crítica” também ganhou um Jabuti neste ano: ficou em terceiro lugar na categoria Ciências Exatas, Tecnologia e Informática. “Se não puder mais trabalhar como historiador da ciência posso parar ou então pedir asilo político em outro país. Minha grande preocupação é com os jovens e com o nosso futuro como nação.”
À frente do movimento pela regulamentação do ofício, a Associação Nacional de História (Anpuh) informa que “essa preocupação não tem fundamento” na resposta encaminhada ao Valor pelo presidente da entidade, Rodrigo Patto Sá Motta, historiador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “O projeto de lei não implica intervenção na esfera de produção e divulgação do conhecimento. Nenhum historiador sério concordaria com isso, e é claro que a Anpuh seria a primeira a denunciar iniciativas contrárias à liberdade de expressão”, garante Sá Motta. Nota, de fato, qualidade variável da produção de livros na área: “Encontram-se desde obras que exploram temáticas bizarras, interessadas apenas em atrair o consumidor em busca de curiosidades, até trabalhos de melhor qualidade”. Acrescenta que se um número maior de historiadores profissionais escrevessem obras de divulgação seria melhor: “Não temos dúvida, mas nem sempre é fácil conciliar as diversas atividades exigidas do historiador profissional”.
O fim da exigência de autorização para biografias deve fazer que antigos projetos sejam enfim realizados, concordam editores e autores.
Lira Neto lembra que não existe ainda uma grande biografia de Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Guimarães Rosa. Mário Magalhães revela que adoraria escrever uma biografia não autorizada de Carlos Lacerda. Hélio Sussekind, do selo Primeira Pessoa, também imagina livros para encaminhar, caso ocorra a liberação. “Poderemos pensar em fazer biografias que nem sequer considerávamos antes como hipótese, de autores a que não temos acesso para propor.”
“Tenho cinco ou seis para desengavetar”, diz Pascoal Soto, diretor-editorial do grupo LeYa no Brasil, que classifica como “de alto risco” o negócio da não ficção – biografias e livros-reportagem. “Quando a lei não garante a plena liberdade de expressão, como acontece em qualquer democracia madura, ficamos sujeitos a ver nossos livros serem retirados do mercado.”
Soto fala de cátedra. Em dezembro de 2006, era o editor, na Planeta, de “Roberto Carlos em Detalhes”, do jornalista e historiador Paulo Cesar de Araújo, “o caso emblemático do que há de mais mesquinho e retrógrado nesta atual legislação”, como define. O artista entrou na época com duas ações na Justiça contra editora e autor, com pedido de prisão e pesada multa diária. Por acordo, o livro foi retirado de circulação. Proibido de ser editado e vendido, é encontrado livremente na internet.
Com a restrição, o mercado brasileiro “fica um pouco acanhado”, reconhece Soto, “mas nem tanto”. Argumenta que o fato de uma biografia ser autorizada não significa que será ruim. “Existem casos de todos os tipos. Herdeiros que nada pedem, que se colocam à disposição para ajudar e oferecem fontes importantes de informação. Existem os que autorizam e depois desautorizam. E existem também aqueles que, como Roberto Carlos, entendem que ninguém pode contar a sua vida a não ser ele mesmo, sendo ele uma figura pública.” O editor recorda-se dos bastidores da publicação: “Preocupei-me em deixá-lo – o Roberto Carlos – a par de tudo desde o primeiro instante. Enviamos os originais a ele, mas não para pedir sua autorização, e sim para que soubesse o que seria publicado. Como ele nunca se pronunciou a respeito, achávamos que tudo poderia acontecer, mas estávamos certos de que não havia nada no livro que pudesse ser contestado”.
Soto banca alguns riscos na LeYa. Lançou neste ano “À Queima Roupa”, de Vicente Vilardaga, sobre o assassinato da jornalista Sandra Gomide em 2000 por seu ex-namorado, então diretor de redação, Antônio Pimenta Neves, réu confesso que cumpre pena. Há poucos dias, colocou nas livrarias uma obra sobre a música de um dos integrantes do Procure Saber. “Chico Buarque: O Poeta das Mulheres, dos Desvalidos e dos Perseguidos”, com 24 ensaios escritos por Rinaldo Fernandes, sai com tiragem de 5 mil exemplares. “Está tudo bem, por enquanto”, Soto ri.
Audiência pública
Em editoras jovens ou de menor porte, é maior o peso de uma aposta que seja impedida de circular. “O custo de investimento e tempo costuma ser de 10 a 15 vezes maior do que num livro de ficção”, calcula Pedro Almeida, que conhece o mercado por sua trajetória em editoras como Ediouro e LeYa, hoje publisher da novíssima Faro Editorial. “Um projeto de ficção depende apenas do escritor, não raro o de não ficção envolve equipes de até cinco pessoas, em adiantamentos e prazos que variam.” Fazer uma não ficção exige desde “viagens a despesas de gravação e transcrição, convencer pessoas a falar sobre temas complexos, a separar histórias de ‘estórias’, só para começar”. Como recorda, muitos projetos contratados nunca são entregues.
Almeida cultiva há quase uma década uma lista de biografias de personagens da música e literatura que gostaria de fazer. “Não gastarei energia sabendo que podemos trabalhar alguns anos em cada projeto e depois não poder ser publicado.”
Liberadas, as biografias não vão deixar de ser contestadas na Justiça. Antes o contrário. Quem avalia é Sergio Machado, do grupo Record, que coleciona em uma década diversos casos de livros apreendidos e indenizações altas. “A indústria dos danos morais vai continuar a se movimentar. Há advogados que fazem processos de graça, pedindo valores indenizatórios altíssimos, de até R$ 4 milhões, porque se o reclamante não tiver renda não precisará arcar com custas caso perca a causa”, prevê.
Não adianta reler os títulos com lupa e consultar um batalhão de advogados antes de enviá-los para as livrarias. Num grupo editorial grande como seu – 60 títulos lançados por mês –, as ações e idas e vindas na Justiça “fazem parte do dia a dia”, relata. “Raramente um livro é recolhido; paga-se para o reclamante.” Na maior parte dos casos, a editora vence a batalha. Na hora de contratar o projeto, tende a aceitá-lo quando o autor já o concluiu. Se ainda vai ser pesquisado e escrito, costuma desistir mais. Recusou a biografia não autorizada de Roberto Carlos que chegou até ele antes de ir para a Planeta porque Paulo Cesar de Araújo era seu autor – pela Record saíra “Eu não Sou Cachorro não”, sobre a música brega na época da ditadura. “Imaginei que ia dar problema por causa do personagem.” Apesar do risco, neste ano bancou “Dirceu”, lançado pelo jornalista Otávio Cabral, 50 mil exemplares já vendidos. “Celebridades tendem a entrar mais na Justiça, políticos sabem que a repercussão pode ser pior.”
Na lista de livros com idas e vindas na Justiça, “Abusado”, uma reportagem de Caco Barcellos sobre o tráfico na favela Santa Marta, no Rio, teve de tudo. “Até personagem com nome trocado pediu indenização dizendo que, pelas características descritas, poderia ser identificado. Ganhamos todas, com exceção da foto de capa, que tínhamos comprado de um jornal, mas pertencia ao fotógrafo.” A ação que talvez tenha pesado mais no bolso envolveu “Morcego Negro – PC Farias, Collor, Máfias e a História Que o Brasil não Conheceu”, de Lucas Figueiredo. “Um juiz que considerou pouco lisonjeira uma das passagens do livro pediu R$ 400 mil. Tive de pagar. Se há membros do Judiciário envolvidos na ação, sempre se perde.”
A alteração da lei em nada mudará o ritmo na Geração Editorial, voltada para reportagem e história. A editora é conhecida por topar riscos mais do que a média das outras. “Não estamos preocupados com a liberação ou não de biografias. A Constituição nos garante a liberdade de expressão e nos baseamos nisso para publicar qualquer livro. E estamos com muitos projetos em produção neste momento”, afirma Luiz Fernando Emediato, publisher. Dentro de um mês, “um livro-bomba sobre um grande financista”. Até janeiro, obra que trata de “grandes negociatas internacionais de políticos, empresários e banqueiros brasileiros”. Depois, mais um livro de Paulo Henrique Amorim “sobre o poder econômico e político e os meios de comunicação nos últimos 50 anos”.
Emediato já enfrentou processos por publicar livros como “Mil Dias de Solidão”, de Claudio Humberto, ex-porta-voz do presidente Collor, e “A Privataria Tucana”, de Amaury Ribeiro Jr. Entre reclamantes, encontram-se ex-ministros, governadores e deputados, empresários e PMs. “Fomos processados por um bandido estuprador condenado a mais de 100 anos de prisão. De dentro da cadeia, alegou que sua ‘honra’ tinha sido prejudicada por um livro nosso. Ganhamos.”
Independentemente de autorização ou diploma em qualquer que seja a área, a liberdade para escrever é, como ressalta, incontestável: “Para escrever um livro sobre qualquer tema é preciso apenas ter uma ideia. Nem se exige talento, pois, estando assegurado o direito da livre expressão, idiotas, apedeutas e iletrados também escrevem. E há até quem publique. Acho fascinante essa liberdade.”
Às vésperas da audiência pública em Brasília, um evento em Fortaleza, entre os dias 14 e 17, vai celebrar o gênero não só na literatura – também no cinema, na música e nas artes visuais. Marcado com antecedência, coincidiu com a volta da discussão na mídia. “Os brasileiros adoram biografias, e não existia um evento dedicado exclusivamente a elas”, constata Mário Magalhães, o biógrafo de “Marighella”, convocado para a curadoria literária. “A ideia é esmiuçar como e por que se faz biografia, sem esquecer o debate sobre o marco legal obscurantista”, informa.
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Joselia Aguiar, para o Valor Econômico