Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Concordo com Roberto Carlos

Em um ponto. Algumas passagens de uma biografia, só mesmo o biografado é capaz de contar, só ele viveu aquilo daquele jeito. Diferentes pessoas vivendo a mesma coisa nunca contarão a mesma história, cada uma terá a sua versão. Então, acho que entendo o que Roberto Carlos quer dizer. Grande parte da minha biografia, por exemplo, contando ninguém acredita. Vamos a um episódio qualquer. Em 1987, em Porto Alegre, fiquei nua no show da Rita Lee no Gigantinho. Fato. Está nas páginas, na minha biografia e nas dos milhares de pessoas que estavam no show. Está na biografia da minha mãe, embora ela na época não tenha achado a me-nor graça.

Na tarde do show ensaiei com a própria Rita, no palco vazio, a performance. Ela na frente dizendo: “Sobe aqui, caminha por esta marcação no chão, tá vendo? Faz este caminho marcado com fita-crepe. Aqui nesta estrelinha desenhada no chão, você vem, bem na ponta do palco, abre a capa e fica nua pra 12 mil pessoas, falô?”

“Só isso?”

“Só, meu.”

Disparei para arranjar uma capa. Sapato de saltão, ou sapatão de salto, se preferirem, gel pra espetar o cabelo blonde… “O quê? Ah, sim, tô saindo sim. Vou ali no Gigantinho ficar pelada, não demoro, não.”

“Não tem roupa nenhuma mesmo?”

Voltei para o ginásio. Nada foi muito complicado, calcei os sapatos e estava pronta. Fiquei assistindo debaixo do palco, à Rita cantando, inteiramente encapetada, incrível ver dali. Omitirei detalhes porque me basta o inevitável e não quero que advogados achem que estou publicando aqui parte da biografia dela e não da minha. Estou aqui humildemente inaugurando o gênero “autobiografias desautorizadas pela memória da própria escritora”.

Daqueles fatos lembro bem, ou melhor, jamais esqueceria. Rita fazendo um showzaço, Suely Aguiar, a melhor produtora do Brasil, ali ao lado… Já pensou? Um dia trabalhar com a Sue, ser uma dessas cantoras bem doidas com quem ela trabalha? Rita chamou a Miss Brasil 2000 ao palco. Subi, caminhei pela marcação, cheguei à estrelinha, fui até bem a ponta, abri a capa e fiquei nua para as 15, 12, 15, nunca sei, mil pessoas. Então virei para a banda e abri a capa para os músicos, não adianta, fui educada assim.

Isso é o que consta na minha biografia, nas páginas, com muitas testemunhas. Desci e já no corredor dos vestiários em direção ao camarim… “Adriana, você é a Adriana?” “Sim, você sabe que sim, acabou de me ver no palco.” “Não tem roupa nenhuma mesmo aí debaixo dessa capa?” “Não, você sabe que não. Com licença, por favor?” “Olha, eu fui advogado da Elis Regina e de outras estrelas da mú…” “Dá licença, por favor?” “E tava pensando… se a gente…”

Calúnias e inverdades são inaceitáveis

Eu não via jeito de escapar. O homem era enorme, estava bêbado e me encurralava contra a parede. Meu camarim, o úuultimo do corredor. Segurando a capa com as mãos e com os saltos altíssimos, não tinha ângulo para dar um golpe, digamos, baixo, e continuar equilibrada. Todas as atenções voltadas para o palco.

Passou um vulto pelo corredor e pensei “estou salva”, mas como não voltou, concluí “estou frita”. Poderia aparecer alguém agora, meu Deus, um segurança, um biógrafo dando sopa, sei lá. De repente, do nada, no começo do corredor, Suely acende as luzes e pergunta: “Meu, tá tudo bem aí?” Corri pro camarim tentando não perder o equilíbrio, o topete e a pose, em vão. Nem “muito obrigada, Suely” eu disse. Mas ela virou o “meu anjo Suely”, e daquele monstro o que ela fez eu jamais soube. Dela também fiquei sem saber, mas nunca a esqueci.

Creio, então, que o rei está certo. Há passagens sobre as quais só o biografado poderá falar, ou parecerão, se escritas por outra pessoa, no meu caso, por exemplo, ficção – científica. Mas concordo mesmo é com Joaquim Barbosa e Ana Maria Machado (e o seu livrinho) e acho que o importante mesmo é a conversa. Precisamos debater, atualizar, aprimorar as leis e, sobretudo, cumpri-las. Calúnias, difamações, inverdades e afins devem pesar no bolso de quem as publica, são inaceitáveis.

P.S. – Anos depois, 2002, mais precisamente no Rio, em reunião no escritório do meu novo empresário, depois de conversarmos, ele disse: “Tô animado, vamos lá. Vou chamar a sua produtora… Vem cá, Sue!” Sue? Como Sue? Não tinha entendido que Leo e Sue trabalhavam juntos. No show da Rita estava ocupada abrindo a capa, não me detive a certos detalhes, e, aos que me detive, cala-te boca. Mas Sue seria aquela Sue, a Sue-ly Aguiar, o meu anjo Suely? Ela aparece na porta com um sorriso: “E aí, meu?”

Não posso contar essa história que choro toda vez.

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Adriana Calcanhotto é colunista do Globo