Sem saber se dizia ou se se desdizia, Roberto Carlos declarou há pouco que é a favor de biografias não autorizadas – desde que comportem alguns “ajustes”. Supondo que sua sugestão passe à legislação, e esquecendo os “ajustes” que ele imporia aos seus próprios biógrafos, como se daria isso na prática?
Os herdeiros do presidente Emílio Garrastazu Médici, por exemplo, talvez tolerassem uma biografia do seu parente, mas exigiriam “ajustes” nas referências à tortura durante o seu mandato. O Médici pai ou avô que eles conheceram não se identificaria com o homem descrito pelo biógrafo como responsável pelo pior período da ditadura. Afinal, quem conheceu papai ou vovô Emílio melhor do que eles, que privaram de sua intimidade? “Ajustes” teriam de ser feitos. A medida beneficiaria também os herdeiros do delegado Sérgio Fleury – eles não gostariam de ver o seu ilustre parente mostrado como o maior torturador da história do Brasil. Donde, “ajustes”. E o mesmo quanto a possíveis biografias de Luiz Carlos Prestes, Carlos Lacerda, Jânio Quadros, Costa e Silva, Tancredo Neves e outros personagens centrais da política brasileira – quem, aos olhos de seus filhos e netos, não será merecedor de “ajustes”?
Quadro branco
Todos os citados já morreram e, mesmo assim, por intermédio de seus herdeiros, continuariam interferindo no contar a história do Brasil. O que torna ociosa outra medida que intentam sugerir: a necessidade de esperar xis anos após a morte da pessoa para ser possível biografá-la – com o consequente impedimento a se biografar vivos.
É outra jabuticaba jurídica. Por ela, não apenas José Sarney, Paulo Maluf e Fernando Collor continuariam proibidos aos biógrafos e historiadores, mas também Fernando Henrique Cardoso, Lula ou Eike Batista. Melhor passar logo o apagador no Brasil e deixá-lo um grande quadro em branco.
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Ruy Castro é colunista da Folha de S.Paulo