Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quando a mídia faz sua parte

Na segunda-feira (4/11), a imprensa divulgou um estudo mostrando que o número de estupros em 2012 foi maior do que os homicídios dolosos. No domingo seguinte (10/11), o jornal O Estado de S.Paulo dedicou uma página ao tema, com uma detalhada entrevista com a ministra Eleonora Menicucci, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, na qual ela trata da indignação da presidente Dilma Rousseff e as medidas que o governo quer tomar para mudar esse quadro.

Em geral, a violência contra mulheres só é notícia quando o resultado final é a morte. Desta vez, pelo menos, um jornal deu ao assunto o destaque merecido, não deixando um tema relevante desaparecer, como costuma acontecer quando a pauta é a discussão da violência contra mulheres. Enquanto no resto da mídia o assunto acabou se resumindo à reprodução da notícia oficial sobre os novos índices, a entrevista do Estadão funciona como a abertura de um debate que deve ser levado adiante na sociedade com a ajuda da mídia.

A titular da Secretaria de Políticas para Mulheres fez questão de dizer que a presidente e ela sabiam que o índice viria maior, “porque as mulheres estão com mais coragem para denunciar e hoje contam com um serviço de atendimento mais organizado e eficaz”. Ela acredita que o número é até menor do que deveria, pois se refere apenas às mulheres que denunciaram os abusos, procuraram postos de saúde e serviços especializados:

“Deve haver um número ainda maior, contando os estupros que acontecem dentro de casa, com crianças, sobretudo. Estupros de pai, padrasto, namorado da mãe, tio, vizinho, enfim, todo aquele leque de agressores que se esconde na família ou no entorno dela. O dado não nos supreende, porém é alarmante. É lamentável que a sociedade brasileira, em pleno século 21, ainda se defronte com a barbaridade que é a violência contra as mulheres, com a barbaridade que é o estupro.”

Olhar vigilante

Em resposta à pergunta sobre a relação entre distribuição de renda e estupro, a ministra afirmou:

“É claro que, ao conquistar alguma autonomia econômica, a mulher ganha autoconfiança, perde medo. Porém o estupro ainda é decorrência da casa grande e senzala. Do patriarcado. Fora isso, a diminuição da desigualdade social ainda não se fez, na mesma medida, em relação à desigualdade de gênero. A mulher ainda é vista como propriedade do homem. E mesmo que tenhamos julgamentos exemplares de agressores, como o Bruno, o Mizael, aquele estupro coletivo em Queimadas, na Paraíba, ainda persiste a visão patriarcal”.

Esse tipo de comportamento, infelizmente não se limita ao Brasil, como mostra a antropóloga Debora Diniz no artigo “A marca do dono”, publicado no Estado de S.Paulo no mesmo dia:

“A violência doméstica é uma das maneiras de governar os corpos da casa pelo regime do medo. Ela pode se expressar pela disciplina do castigo físico, pela humilhação ou pelo confinamento. Ou ainda por uma das formas mais perversas de expressão do patriarcado – o estupro. O estupro ofende as mulheres, não só no corpo possuído pelo prazer e ímpeto de tortura do agressor, mas principalmente porque nos aliena da única existência possível: a do próprio corpo. Uma mulher vitimada pelo estupro não é só alguém manchada na honra, como pensavam os legisladores no início do século 20, mas alguém temporariamente alienada da existência”.

Com essas duas matérias, o Estadão dá um bom exemplo aos seus competidores ao falar de um assunto que não deixa mulher alguma indiferente. Transformar o debate sobre a violência contra mulheres em assunto constante da mídia seria uma boa forma de ajudar. Cobrar atitudes das autoridades, também. A ministra Eleonora Menicucci garantiu na entrevista que o governo não vai poupar recursos para proteger as mulheres. Cabe à imprensa cobrar a aplicação dos recursos prometidos. A cobrança da mídia não vai resolver o problema, mas pode ser um primeiro passo para a mudança da mentalidade dos agressores.

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Ligia Martins de Almeida é jornalista