No Brasil, os diálogos, mais ainda quando públicos, frequentemente se transformam em discussões, e as discussões em brigas, com ofensas à honra e insultos pessoais que, como as lâmpadas incandescentes, geram muito calor e pouca luz. É o que se dá, agora, quanto à questão das biografias, que alguns compositores e cantores querem submeter à prévia autorização dos biografados ou dos herdeiros que lhes sucedam, no caso de obras para “uso comercial”, quando a eles também se destinaria parte dos lucros editoriais. Como cidadão, leitor e escritor, gostaria de dizer o que penso, com a lembrança, aos que se dispuserem a bater boca, que a opinião aqui apresentada será a minha, não a deles… Assim, ouçam-me, por favor, com a atenção e o respeito devidos a quem pede a palavra.
Defendo a total, completa e absoluta liberdade a ser garantida ao biógrafo na elaboração de um livro, direito a que correspondem a responsabilidade legal, a inteireza ética e a correção profissional quanto ao que escrever, afirmar ou mesmo insinuar. Quem sentir-se injuriado, caluniado ou difamado recorra à Justiça. Nossas leis, diferentemente das de outros países, são frouxas ou benévolas? Pois que se mudem as leis, se endureçam os julgamentos, se agravem as penas. Sujeitar biografias à aprovação de personagens ou parentes não as fará melhores, nem mais exatas, nem mais verdadeiras, mas apenas mais convenientes, mais parciais, mais comprometidas, mais de acordo com as exigências dos retratados ou com os interesses das famílias.
Em favor das biografias brasileiras, não há testemunho mais eloquente que o delas próprias: assinadas por escritores como Alberto Dines, José Louzeiro, Humberto Werneck, Fernando Morais e Ruy Castro – para não estender a relação aos mais antigos –, impõem-se pelo alcance da pesquisa, pela riqueza documental, pela fidelidade histórica, pelo rigor do texto, a par da elegância do estilo e do valor literário que as engrandecem. Tome-se, por exemplo, a monumental Chatô, o Rei do Brasil, em que, para narrar a história de Assis Chateaubriand, Fernando Morais compôs com maestria um gigantesco painel do tempo em que viveu o polêmico jornalista. Imaginemos que, por deliberação dos herdeiros, só encontrássemos no livro o mecenas criador do Masp, e não o chantagista de empresários e o truculento homem de negócios que ele também o foi. Seria um meio retrato, uma reconstituição tendenciosa, um documento suspeito, com o que perderiam não apenas os leitores, mas também a literatura biográfica e até a história do Brasil.
Exceções de praxe
Gosto de ler biografias, memórias, cartas, simplesmente porque toda vida me interessa, por mais despojada que pareça. Para Fernando Dídimo, saudoso amigo e conterrâneo cearense, é a prova de que tenho uma “porção comadre”, curiosa por saber da vida alheia… Em 2010, a convite da Academia Brasileira de Letras, passei de leitor a autor, ao escrever uma pequena biografia de Rachel de Queiroz, A Senhora do Não Me Deixes. Nela, jamais omitiria o apoio da romancista ao golpe de 1964, tantas vezes confirmado por ela própria. E Dom Hélder Câmara, como biografá-lo sem dizer da ligação com o integralismo que experimentou na juventude? Será possível ignorar a simpatia e a admiração de Gilberto Freyre pelo ditador lusitano Oliveira Salazar, tão fortemente expressa nos livros Conferências na Europa (depois intitulado O Mundo que o Português Criou) e Aventura e Rotina?
Há pouco, Daniela Mercury assumiu, honrada e corajosamente, a homossexualidade, que diz respeito apenas a ela e àqueles a quem ama. Se no futuro, por hipótese, os filhos pudessem vetar referências ao fato, os biógrafos teriam de calar-se quanto a uma decisão que só dignifica e engrandece a cantora. A verdade é que não se pode reescrever a história, refazer o passado, rebobinar a vida, como se fora um filme do qual não queremos rever algumas partes. Sobretudo quando se é artista, celebridade, que passou a vida inteira em busca da fama para depois, fingidamente, reclamar do assédio, do interesse dos fãs, como se pudesse usufruir o anonimato a que só tem direito o cidadão comum.
Declaradamente contra as biografias não autorizadas, Caetano Veloso escreve, com acerto mas algo contraditoriamente, em artigo para o jornal O Globo: “Tenho dito a meus amigos que os autores de biografias não podem ser desrespeitados em seus direitos de informar e enriquecer a imagem que podemos ter da nossa sociedade. (…) Não me sinto atraído pelo excesso de zelo com a vida privada e muito menos pela ideia de meus descendentes ficarem com a tarefa de manter meu nome ‘limpo’.”
Que prevaleça, pois, o bom senso no debate em torno das biografias, que, no Brasil como no estrangeiro, não devem classificar-se em autorizadas e não autorizadas, mas em apenas dois tipos: más e boas, facilmente diferenciadas pelos apreciadores do gênero. Embora livres para escrevê-las, os biógrafos nunca estarão a salvo de problemas, como afirma, com o saber de experiências feito, o grande mineiro Ruy Castro, doutor na matéria: “Com as exceções de praxe, o biografado ideal não deveria ter pais, nem filhos, nem sobrinhos, nem netos, nem irmãos, nem mesmo cunhados. Para isso, precisaria ser órfão, filho único, solteirão, estéril e brocha”.
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Edmílson Caminha é jornalista e escritor