Em muitos momentos, as biografias não pareciam ser o foco, mas sim, pretexto para linchamento, como se o público da MPB estivesse há anos esperando qualquer deslize de seus ídolos para dar vazão a um ódio. Outra lição da Batalha das Biografias: também foi impressionante ver a união de vários grupos, que até então me pareciam inconciliáveis, formando tropa de elite animadíssima contra os componentes do Procure Saber. Não me lembro de ter visto antes a imprensa xingada de “PIG” abraçada com seus detratores, os cibermalucos de direita elogiando os de esquerda, a(o)s dona(o)s de casa fazendo coro para o juridiquês de ex-ministro(a)s do STF, todos caminhando e cantando com as mesmas palavras de ordem, em manifestação nacional.
Dava para perceber a alegria da perda da virgindade: estamos pela primeira vez falando mal de Caetano, Gil e Chico! Os medalhões juntos e misturados na berlinda! O clima era de travessura, que tomou conta do país inteiro, ou pelo menos das multidões que acreditam – com alguma razão – que biografias são versões intelectualmente corretas – estilo New Yorker – de números antigos da revista Caras.
Para ser mais preciso: em muitos momentos as biografias não pareciam ser o foco, mas sim pretexto para linchamento, como se o público da MPB estivesse há anos esperando qualquer deslize de seus ídolos para dar vazão a um ódio que ninguém notava dentro de nossos corações vagabundos.
Distinções “não apenas supérfluas, mas indecentes”
Logo surgiram tentativas para explicar a comoção carnavalesca, com pierrôs e colombinas decepcionados. Na Folha, Vinicius Mota celebrou a “derrota esmagadora do (ex-)grupo Procure Saber” como “sinal de amadurecimento do país”, que finalmente deixa para trás um padrão no qual “Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil nunca perdiam”. Seria pensamento isolado, se não tivesse sido complementado dias depois por editorial da mesma Folha, transformando a opinião do jornalista em visão corporativa. O texto, algo panfletário, tinha como título “Crepúsculo dos ídolos”, mas com conteúdo distante da transvaloração dos valores pregada por Nietzsche.
O jornal paulistano apurou que Eduardo Campos e Marina Silva estariam programando encontro com artistas no Rio. Em tom professoral admite que “não há nada de condenável em tais confraternizações”, mas questiona sua eficácia eleitoral: “A dúvida é se a presença dessas celebridades ainda se reveste da importância que teve em momentos mais turvos da história política.” Mencionando a Batalha das Biografias, chega a um diagnóstico: “As celebridades, em especial as da música popular, veem diminuir a admiração que mereciam.” A Folha bate palmas encabuladas: “Melhor assim, talvez; humanizam-se todos”. Afinal, a democracia estimula “a participação sem distinção”.
Ao ler esse editorial, foi inevitável me lembrar de outro filósofo alemão, Peter Sloterdijk. Em seu livro O desprezo das massas, ele afirma que a “mais poderosa máxima política” da modernidade está relacionada com o projeto de “desenvolver a massa como sujeito”, isto é, “vale a motivação de cuidar para que todo poder e todas as formas válidas de expressão partam de muitos”. Então, é preciso acabar com todas as hierarquias verticalizantes que antes distinguiam os poucos poderosos das multidões servis. As distinções se tornam “não apenas supérfluas como também indecentes”: “todo tipo de diferença antropológica teria de ser declarado irreal e inválido”.
O crepúsculo dos “formadores de opinião”
Abaixo os “achadores de diferenças”. Abaixo os nobres, os santos, os sábios, e – última trincheira – os talentosos. A abolição dos talentosos é “mais dificultosa para a sociedade moderna”, pois a burguesia, ao deslegitimar a nobreza feudal, “se reportou a uma nobreza mais válida, à aristocracia natural do talento e do gênio”. Não importa: o trator da “paixão da dignidade para todos” passa por cima de qualquer bastião hierárquico. Sloterdijk arremata: “Talento, como até agora foi entendido, só incomoda. Para aquele que o possui ele não passa de uma armadilha; para aquele que não o possui, somente um aborrecimento. Genius go home.”
No Brasil, a democratização política coincidiu com a invenção/popularização da internet. Seguindo “alguns intérpretes de Hegel”, Sloterdijk desenvolve a hipótese de ser o mundo moderno “uma arena de lutas generalizadas por reconhecimento”, cujo valor “está correlacionado com a escassez”. Ou estava. Agora temos a abundância da realidade virtual, com microespaços de reconhecimento até para o look do dia/verdade política de adolescentes de qualquer vereda do Grande Sertão. O crepúsculo não é só dos ídolos (que, afinal de contas, sempre perderam – lembro aqui apenas um exemplo: o disco “Muito”, com “Terra” e “Sampa”, foi estraçalhado pela crítica e fracasso de vendas), mas de todos os “formadores de opinião”, incluindo os órgãos de imprensa que antes comercializam a escassez de canais para emissão opinativa.
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Hermano Vianna é colunista do Globo