Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Liberdade de expressão e privacidade

O direito à privacidade e o direito à liberdade de expressão do pensamento não raras vezes “parecem” entrar em conflito. Quando isso ocorre, frequentemente, levantam-se vozes eloquentes em defesa do segundo, expondo um dos valores mais importantes dos indivíduos, que é a privacidade, a enormes riscos, injustificáveis.

A análise do direito à privacidade quando confrontado com a prevalência do direito à liberdade de expressão, normalmente, descansa em pressupostos falhos que ignoram os efeitos positivos da preservação da integridade psíquica e moral das pessoas e o caráter de direito fundamental que recebem no sistema jurídico brasileiro. Daí por que, a busca de equilíbrio e da não sobreposição de um direito sobre o outro é a mais correta no que diz respeito à proteção e ao exercício de ambos os direitos, cujos méritos são inquestionáveis.

O direito civil brasileiro determina, sem rodeios ou entrelinhas, que o nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, mesmo quando não haja intenção difamatória. Estabelece, ainda, que salvo se autorizadas, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem poderão ser proibidas pela pessoa de cujo nome e imagem se tratam. Por fim, mas não menos importante, o Código Civil estabelece que a vida privada das pessoas é inviolável.

Proteção dos direitos humanos

E nem poderia ser diferente. A Convenção dos Direitos Humanos da ONU, de 1945, ratificada pelo Brasil, portanto incorporada ao nosso ordenamento jurídico, determina que ninguém será sujeito à interferência em sua vida privada, em sua família, em seu lar ou em sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Todo ser humano tem o direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.

A Convenção de Direitos Humanos da OEA, de 1948, conhecida no Brasil, após sua ratificação, como Sistema de São José da Costa Rica, também manda que se respeite a integridade psíquica e moral das pessoas, porque ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas à sua honra ou reputação. Assim sendo, toda pessoa tem direito à proteção da lei (da sua lei nacional e de domicílio) contra tais ingerências.

A prevalência e a aplicação imediata das normas de direitos humanos (fundamentais), no regime constitucional brasileiro pós-1988, foram opções expressas do constituinte, consubstanciadas, em concreto, pelas regras dos parágrafos 1º e 2º do art. 5º da Constituição Federal. A Emenda Constitucional nº 45, de 2004, aprimorou ainda mais o regime da proteção dos direitos humanos em nosso país, quando acrescentou o parágrafo 3º, ao mesmo art. 5º, citado: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados pelo Congresso Nacional serão equivalentes às emendas constitucionais.”

Conclusões precipitadas

Por outro lado, também o direito à liberdade de pensamento e expressão é um direito humano reconhecido nas convenções aqui citadas e, certamente, convive com seu irmão o direito à privacidade. Razão pela qual, não devem ser contrapostos e, sim, harmonizados. Ao limitar o direito à privacidade pelo escrutínio que este pode sofrer do direito à liberdade de expressão é violar um direito em defesa de outro. É injusto sobrepor o direito à privacidade (aquele de existir moral e psiquicamente com autodeterminação) àquele de liberdade de outrem de se manifestar e expressar justamente sobre o bem maior de alguém que é o seu “eu”, e como esta pessoa (este “eu”) quer se apresentar em seu meio social, familiar e individual. O duelo e a sobreposição de um sobre o outro são equívocos que podem ser devastadores para a pessoa de cuja imagem e privacidade se tratam.

Não existe explicação fundamentada que sustente a hostilidade do direito à liberdade de expressão sobre o direito à privacidade. A prevalência do primeiro sobre o segundo apenas enfraquece a proteção dos direitos humanos no Brasil e implica clara violação à Constituição Federal. É demasiadamente superficial alegar que nesse ou naquele país estrangeiro os tribunais decidiram a favor da primazia do direito à liberdade de expressão sobre aquele à privacidade. Há que se examinar os casos em concreto e verificar quais os fundamentos empregados em cada caso.

São precipitadas as conclusões no sentido de que seria um retrocesso limitar o direito à liberdade de expressão para garantir a privacidade de alguém. De um “alguém” que decidiu levar sua vida de forma “pública”.

Privacidade e dignidade

A pergunta que se insurge é: que curiosidade nos leva a querer ir além do que este “alguém” nos quer dizer ou revelar? Cada um de nós tem o direito de tornar pública a parte de seu “ser” e de seu “existir” que quiser e temos que nos conformar com os limites do bom senso, da ética e da moral. A vida é feita de limites. Os direitos das pessoas se autolimitam nos contornos da razão e da civilidade.

Ao se reduzir ou eliminar a força do direito à privacidade, tendo por fundamento o direito à liberdade de expressão, entra-se na seara de competência do Poder Legislativo, na medida em que somente ele pode alterar o Código Civil e, por procedimentos específicos, alterar a Constituição Federal. Não há tensão entre direitos humanos (fundamentais). É perfeitamente possível sustentar a complementaridade (ou interface) entre direito à liberdade de expressão e direito à privacidade nos casos concretos que chegam ao nosso Poder Judiciário.

O direito à liberdade de expressão deve ser interpretado, não de modo excludente, mas segundo as suas finalidades, de forma tal a ajustar-se e conviver pacificamente, em uma relação de complementaridade e coerência, com o direito à salvaguarda da privacidade e dignidade das pessoas. Sem ela perdemos nossos limites, nossos contornos, nosso “eu” (só meu). São imperativos legais e fáticos da regra da razão.

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Maristela Basso é advogada, professora de Direito Internacional de Propriedade Intelectual na USP (Largo São Francisco)