O analista Edward Snowden emergiu da obscuridade como delator de um programa orwelliano de monitoramento em massa das comunicações entre cidadãos comuns conduzido pela Agência de Segurança Nacional (NSA) dos EUA. Depois, na condição de fugitivo e asilado temporário na Rússia, transformou-se em delator de operações convencionais de espionagem da NSA, direcionadas para Estados. O primeiro Snowden, signatário de uma “carta ao povo brasileiro” na qual ensaia um pedido de asilo político, parece querer se libertar do peso do segundo, que não passa de um peão no tabuleiro geopolítico de Vladimir Putin.
Dilma Rousseff sofreu espionagem americana, denunciou o segundo Snowden, avançando duas casas na coluna da dama. Eu espiono, tu espionas, ele espiona. Estados espionam outros Estados desde a Paz da Westfalia, marco fundador do moderno sistema internacional, em 1648. “Aliados não espionam aliados”, reclamou o chanceler francês Laurent Fabius, uma frase cínica repetida na sequência pela primeira-ministra alemã Angela Merkel. Oh, santa indignação! Madeleine Albright, secretária de Estado no governo Clinton, disse que as notícias sobre o monitoramento de conversas telefônicas do premiê francês François Hollande “não surpreenderam as pessoas” – e testemunhou ter sido alvo de espionagem francesa.
O fenômeno chocante não está na espionagem dos espionáveis, mas na violação massiva da privacidade dos cidadãos. “Aqueles que sacrificam a liberdade essencial para comprar um pouco de segurança temporária não merecem nem a liberdade nem a segurança.” As célebres palavras de Benjamin Franklin formam uma sentença acusatória precisa contra o programa inaugurado no governo Bush e expandido pelo governo Obama. Graças às evidências oferecidas pelo primeiro Snowden, o sistema de contrapesos da democracia americana começa, finalmente, a operar. Dias atrás, um juiz federal julgou inconstitucional a coleta de metadata telefônica pela NSA, declarando que, “provavelmente”, ela fere a Quarta Emenda.
O abraço de urso
O juiz Richard Leon fez picadinho da alegação de que a coleta de arrastão de centenas de milhões de metadados telefônicos sem supervisão judicial é uma ferramenta crucial para prevenir atentados terroristas. A decisão equivale a um pequeno abalo sísmico nos alicerces da fortaleza do Grande Irmão – mas ela não tem nenhum efeito sobre a invasão da privacidade de cidadãos de terceiros países. É aqui que entra o primeiro Snowden.
“Compartilhei com o mundo provas de que alguns governos estão montando um sistema de vigilância mundial para rastrear secretamente como vivemos, com quem conversamos e o que dizemos.” Na sua “carta ao povo brasileiro”, o delator não faz nenhuma referência à espionagem tradicional, entre Estados, concentrando-se no ponto relevante: o direito dos cidadãos, americanos ou não, à proteção da privacidade. É o primeiro Snowden, não o segundo, que se dirige a nós. Significativamente, ele não circunscreve a acusação ao governo americano, preferindo utilizar a expressão “alguns governos”. Há algo nessa opção deliberada pelo plural.
Sabe-se que a NSA compartilha informações com agências de inteligência de países europeus aliados. Um constrangido Hollande silenciou de imediato quando Washington sugeriu, nas entrelinhas, que a verdade sobre a vigilância de cidadãos franceses poderia vazar misteriosamente. Posto diante do falso escândalo da espionagem de Dilma Rousseff, o ex-embaixador americano no Brasil Thomas Shannon insinuou que o Gabinete de Segurança Institucional também figura entre os parceiros da NSA. Apelando ao Brasil, Snowden tenta se livrar do desmoralizante abraço de urso de Putin. Desconfio que, por razões de “segurança nacional”, o governo brasileiro conseguirá que ele desista de sua pretensão de asilo. Para eles todos, o Snowden bom é o segundo.
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Demétrio Magnoli é colunista da Folha de S.Paulo