Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A onda expansiva desatada por Snowden

As revelações do ex-analista de inteligência Edward Snowden sobre a espionagem realizada pelos Estados Unidos e o Reino Unido provocaram um tsunami de consequências globais sem precedentes no mundo dos serviços de espionagem. Puseram os EUA em apuros com seus aliados, geraram uma enorme desconfiança global e multiplicaram a sensação de que vivemos sob o olhar de um grande irmão.

As repercussões internas da crise para os EUA

Na entrevista ao jornal britânico The Guardian em que Edward Snowden revelou ser o responsável pelos vazamentos de informações que expuseram o alcance da espionagem da Agência de Segurança Nacional (NSA), o especialista em informática, de 30 anos, reconhecia que seu “único temor é de que, apesar da importância dessas revelações para os Estados Unidos, nada mude no país”. O medo do ex-técnico da CIA era infundado. Nestes últimos seis meses, o gotejamento das informações a respeito das questionáveis práticas de vigilância governamental, que Snowden foi destilando cuidadosamente para os meios de comunicação, abriu um debate sobre o significado das liberdades civis no século XXI, o que obrigou a Casa Branca e o Congresso norte-americano a revisarem seus programas de inteligência, além de colocar em xeque a política de segurança nacional e a agenda internacional do presidente dos EUA. Barack Obama defendeu nesta quinta-feira a vigência dos programas da NSA, mas reconheceu a necessidade de introduzir algumas reformas. O redesenho será anunciado no mês que vem.

“Sem dúvida, o funcionamento da NSA e a sua estratégia de vigilância é que mais foram afetados pelos vazamentos de Snowden”, diz em conversa telefônica Judd Legum, vice-presidente de comunicações da entidade de estudos Centro para o Progresso Americano. A magnitude e extensão da espionagem, a aparente falta de controle por parte da Administração sobre as atividades da NSA e a crescente irritação da comunidade internacional ao constatar que a vigilância alcançava seus cidadãos, empresas e líderes levaram Obama a anunciar uma revisão do funcionamento da agência.

O primeiro fruto desse exame é o relatório que um comitê de especialistas divulgou na quarta-feira passada, apontando a necessidade de limitar a coleta indiscriminada de dados por parte da NSA e de reestruturar seu organograma. Nessa linha se enquadra uma das reformas legislativas apresentadas no Capitólio. A outra iniciativa pretende manter as atividades da NSA, mas aperfeiçoar os controles. Nesta semana, um juiz federal questionou a constitucionalidade das práticas da agência.

A fuga e as tentativas de asilo do Snowden, primeiro, e a descoberta, depois, de que os EUA controlavam as comunicações de dezenas de líderes mundiais afetaram seriamente a estratégia de política externa do segundo mandato de Obama. Os vazamentos sobre a espionagem da NSA contra a China dilapidaram a autoridade moral com que Washington acusava Pequim de estar trás dos principais ataques cibernéticos aos EUA. O asilo temporário que a Rússia concedeu ao analista, em agosto, colocou em dúvida a capacidade diplomática norte-americana e motivou o cancelamento de um encontro bilateral entre Obama e Vladimir Putin, esfriando as tensas relações com um país cuja cumplicidade é essencial para levar adiante o plano de desarmamento nuclear, uma das prioridades na agenda internacional do presidente norte-americano, e para garantir a retirada das tropas dos EUA do Afeganistão.

“A relação que mais se viu afetada é a europeia, e em especial a alemã. O controle dos celulares dos líderes aliados implica um novo nível de vigilância”, admite Legum. O mal-estar pela espionagem a mandatários europeus quase frustrou o início das negociações do tratado de livre comércio entre a União Europeia e os EUA. Nesta quinta-feira se soube, além disso, que a espionagem norte-americana, ajudada pela britânica, teve acesso aos altos escalões da União Europeia: espionou o comissário Joaquín Almunia em 2008 e 2009, quando ele era o responsável por Assuntos Econômicos e Monetários.

Na América Latina, o Brasil foi o país mais beligerante. Sua presidenta, Dilma Rousseff, além de suspender a visita de Estado que faria a Washington acaba de optar pela compra de aviões militares da Suécia, em vez dos norte-americanos ou franceses. A região também teve oportunidade de manifestar suas queixas por ocasião do incidente com o avião do presidente da Bolívia, Evo Morales. As pressões de Washington para que outros países não concedessem asilo a Snowden levaram o Equador a romper seu tratado de livre investimento com os EUA.

Os vazamentos de Snowden também expuseram a conivência dos gigantes tecnológicos de EUA com a NSA. As empresas, conscientes de que precisam recuperar a confiança de seus clientes, pediram ao presidente que adote o quanto antes “medidas para proteger os cidadãos”.

Obama anunciará as reformas do sistema de inteligência no próximo mês de janeiro. A decisão que ele adotar levará muito em conta a ponderação entre a proteção da segurança nacional e o respeito à privacidade dos cidadãos, mas não poderá ignorar o receio internacional que essas práticas suscitaram e a necessidade de enviar a seus aliados a mensagem de que EUA estão sensíveis às suas queixas e limitarão de alguma maneira o alcance do seu sistema de espionagem. Uma mudança, enfim, embora possivelmente não da magnitude que Snowden pensava em provocar.

Na Europa a indignação fica na ameaça

A Europa tem sido o território onde as revelações de Edward Snowden mais causaram consternação, embora a resposta dada ao escândalo não tenha sido sempre a mais enérgica. A crescente convicção de que empresas, cidadãos e governos comunitários foram vítimas de uma vigilância ilegal, segundo as leis europeias, elevou igualmente a indignação em relação aos Estados Unidos e as simpatias para com o ex-prestador de serviços da NSA. O momento de maior tensão se produziu quando se descobriu que a espionagem havia atingido vários líderes europeus, entre eles a chanceler alemã, Angela Merkel, que chegou a telefonar a Barack Obama para lhe pedir explicações. A isso se somou esta semana a informação sobre a espionagem de 1.000 alvos até agora desconhecidos, entre os quais figura o comissário Almunia. A Comissão condenou energicamente esse “fato inaceitável”. “Esse não é o tipo de comportamento que esperamos de nossos parceiros estratégicos, muito menos de nossos próprios Estados membros”, acrescentou, em alusão ao Reino Unido.

Apesar da consciência de que enfrentam um problema conjunto, os países preferiram lidar bilateralmente com os Estados Unidos –­ ou não lidar em absoluto ­­– a criar uma frente comum no Conselho Europeu. Mais além dessas respostas individuais, a voz mais contundente desde Bruxelas veio do Parlamento Europeu, que criou uma comissão de investigação para esclarecer o ocorrido, pediu que se suspendessem acordos-chave de intercâmbio de dados com Washington e condicionou seu aval a um acordo comercial, que os dois blocos negociam atualmente, a que se restabeleça a confiança. A vice-presidente da Comissão Europeia, Viviane Reding, também foi contundente com os parceiros estadunidenses. A ira serviu, pelo menos, para que uma delegação de Washington se deslocasse pela primeira vez até Bruxelas e respondesse às perguntas de seus parceiros.

Longe de estar encerrado, o último enfrentamento por conta desse episódio afeta o próprio Snowden. O convite da Eurocâmara ao ex-analista para que compareça ­­– a distância – perante os eurodeputados enfureceu os Estados Unidos, que alertam para os danos que esse episódio poderia causar à relação transatlântica.

Londres, o grande aliado da NSA

A difusão de parte dos documentos filtrados por Edward Snowden assinala o aliado britânico como cúmplice dos Estados Unidos na interceptação sistemática de milhões de comunicações de voz e dados. E o governo de David Cameron optou pela tática do contra-ataque, empreendendo uma campanha contra o jornal britânico que divulgou essas revelações, The Guardian, acusado de “dar um presente aos terroristas” e de prejudicar a segurança do Reino Unido.

O Quartel-General de Comunicações Governamentais (GCHG, na sigla em inglês) é o braço dos serviços de inteligência britânicos que, segundo os dados passados por Snowden, exerceu um papel imprescindível na rede global de espionagem, através do programa norte-americano Prisma. Essa alegação – que inclui a participação britânica na espionagem dos líderes mundiais – envolve a legislação do Reino Unido na matéria e provocou, como se viu, o inédito comparecimento dos três representantes máximos dos serviços secretos (o GCHQ, a inteligência interna, MI5, e a externa, MI6) perante os deputados da Câmara dos Comuns, televisionada ao país em novembro.

Em contraste com o tratamento de luvas brancas que eles receberam na ocasião, a mesma comissão parlamentar do Interior submeteu semanas depois o diretor do Guardian, Alan Rusbridger, a um verdadeiro assédio que incluiu o questionamento de seu patriotismo. O jornal havia recebido antes pressões em particular do governo, como revelou Rusbridger por ocasião da detenção em agosto, de David Miranda, companheiro do jornalista Glenn Greenwald, que lhes havia feito chegar os documentos do prestador de serviços da CIA. Londres foi alertada pelos EUA da presença de Miranda na lista de passageiros em trânsito no aeroporto de Heathrow e, em um claro abuso de poder, lhe aplicou imediatamente a lei antiterrorismo.

As escutas maciças lembram aos alemães sua história mais sombria

As revelações de Edward Snowden provocaram impressão forte sobre a opinião pública alemã, já desde a primavera. Um país que sofreu os abusos da Gestapo nazista e da Stasi na Alemanha comunista recebeu com rejeição especial a espionagem cometida contra sua chanceler. A comoção começou com as primeiras informações publicadas em jornais estrangeiros. O então ministro do Interior Hans-Peter Friedrich disse que tomou conhecimento dos fatos pela imprensa. A chanceler Angela Merkel recebeu o presidente americano Barack Obama em Berlim. Pediu a ele que equilibrasse “segurança e liberdade”, mas suavizou o assunto, afirmando que “a internet é um terreno desconhecido”.

No final de junho, o semanário Der Spiegel publicou reportagem exclusiva sobre a espionagem maciça realizada pelas agências americanas e britânicas na Alemanha e no resto da Europa, incluindo as representações da comunidade europeia em Washington. O escândalo foi enorme e colocou o governo de Angela Merkel na defensiva, faltando apenas oito semanas para as eleições gerais. Os principais meios de comunicação alemães repercutiram o escândalo e aumentaram a pressão sobre o Executivo, que reagiu com palavras mais duras e enviou Friedrich em visita-relâmpago a Washington. O ministro deu o caso por solucionado.

Em outubro, porém, o Der Spiegel publicou que os EUA tinham grampeado o telefone celular de Merkel. Agora sim encostada na parede, a chanceler chamou Obama para protestar e iniciou discussões para um acordo de não espionagem mútua com os Estados Unidos. O parlamentar dos Verdes Hans Christian Ströbele se reuniu com Snowden e propôs que o convidassem a viajar a Berlim para dar declarações sobre a espionagem. A Alemanha impulsionou a resolução para pedir mais privacidade na internet.

A Espanha reagiu com queixa moderada

O caso Snowden não agravou muito a crise entre Madri e Washington. Bastou o embaixador norte-americano em Madri, James Costos, assegurar, em 8 de novembro, que a NSA “respeita a privacidade dos cidadãos espanhóis e o devido marco legal” para que o ministro espanhol do Exterior, Manuel García-Margallo, decidisse esquecer que alguns dias apenas antes tinha advertido que, se fosse confirmada a espionagem maciça, seria quebrada a confiança entre os dois aliados. A Espanha tinha pressa de virar a página: os príncipes de Astúrias queriam viajar à Flórida e Califórnia e Rajoy estava à espera de um encontro na Casa Branca, marcado finalmente para o próximo 13 de janeiro.

Diante da Comissão de Segredos Oficiais do Congresso, o diretor do Centro Nacional de Inteligência (CNI), Félix Sanz, aceitou a versão da NSA de que os mais de 60 milhões de metadados recopilados em um mês correspondiam a comunicações feitas fora da Espanha. Uma versão tão difícil de crer quanto de rebater.

A tempestade passou sem deixar rastros, exceto, talvez, por uma freada brusca nos planos do governo de flexibilizar o marco legal e permitir que o promotor público, e não apenas o juiz, possa ter acesso aos metadados. Se a confiança entre os governos não se deteriorou, não se pode dizer o mesmo quanto à confiança dos cidadãos no sigilo de suas comunicações.

Consequências econômicas

O chamado “caso Snowden” não vem tendo consequências apenas políticas, mas também econômicas. Empresas e também instituições públicas pelo mundo afora hoje desconfiam das firmas norte-americanas de correio eletrônico, armazenamento de dados, etc., porque estão submetidas à legislação americana, com a Lei Patriota e a Cispa [Lei de Partilha e Proteção de Ciberinteligência], que outorgam amplos poderes aos serviços secretos, a começar pela NSA.

Uma pesquisa conduzida em julho pela Cloud Security Alliance, associação que promove as boas práticas de internet na nuvem, revelou que, de um total de 207 empresas não americanas que aceitaram participar da pesquisa, nada menos que 56% hoje relutam em trabalhar com provedores dos EUA. E 10% tinham decidido cancelar projetos relacionados a esse país. Vem daí o fato de o analista David Castro, da Fundação Tecnologias da Informação e Inovação, com sede em Washington, opinar que “as políticas de segurança dos EUA são prejudiciais aos interesses nacionais do país”.

Na Europa, é entre os empresários da Alemanha e, em menor medida, da França e Suécia que a colaboração das empresas de TI com a NSA foi recebida com mais alarme. Hoje eles procuram alternativas para proteger seus metadados. Uma dessas alternativas consiste em deixá-los “em casa”, não armazenando-os em servidores situados fora de suas fronteiras. A Suíça também se oferece como solução de mudança, deixando entender que em seu território os dados estarão tão seguros quanto o dinheiro. A Espanha também pode aspirar a tornar-se uma alternativa, porque figura entre os quatro países do mundo mais solventes em matéria de proteção da privacidade de seus cidadãos, segundo a consultora Background Checks.org.

O asilo russo do responsável pelos vazamentos azedou as relações entre Moscou e Washington

O caso Snowden foi um temas mais discutidos deste ano na Rússia. E o nome do jovem ex-analista da CIA não foi omitido na tradicional entrevista coletiva à imprensa do presidente russo, Vladimir Putin, realizada nesta quinta-feira. O líder russo precisou que não conheceu Snowden pessoalmente nem falou com ele, mas que Snowden lhe parece “uma pessoa interessante”, já que, graças a ele, “algo mudou na cabeça de milhões de pessoas, incluindo as de importantes líderes políticos contemporâneos”.

Putin destacou que a Rússia não tem a intenção de arrancar do ex-analista da CIA alguma informação sobre o trabalho dos serviços secretos americanos: “Falando em termos profissionais, não estamos trabalhando nem trabalhamos no passado com ele no plano operacional e não o perturbamos com perguntas sobre os detalhes do trabalho”, afirmou.

Edward Snowden passou 38 dias na área de trânsito do aeroporto Sheremetievo, de Moscou, aguardando a solução de seu caso, e foi obrigado pelas circunstâncias a pedir asilo político à Rússia. A decisão de Moscou, em 1º de agosto, de lhe conceder asilo político temporário levou a novo agravamento nas relações já tensas entre Moscou e Washington.

O presidente norte-americano Barack Obama se negou oficialmente a viajar a Moscou para reunir-se com seu colega russo, Vladimir Putin. A reunião estava prevista no contexto da cúpula dos líderes do G-20 em São Petersburgo, no início de agosto. E, embora depois o ministro russo do Exterior, Sergei Lavrov, tenha assegurado que o caso Snowden não afetaria as relações bilaterais, a reunião bilateral entre os dois presidentes foi adiada e, segundo fontes do Kremlin, já não terá lugar em 2013.

O mesmo Lavrov insistiu na semana passada que em várias instituições norte-americanas “há pessoas dispostas a nos prejudicar” por dar asilo a Snowden. “Não fomos nós que anulamos o passaporte de Edward Snowden, indispensável para viajar pelo mundo, nem fomos nós que escolhemos sua rota, foi ele próprio quem o fez. Não fomos nós que organizamos horrores como o pouso forçado do avião do presidente boliviano Evo Morales”, acrescentou o diplomata.

Segundo Lavrov, o problema se deve ao fato de que Rússia e Estados Unidos até hoje não firmaram um acordo de extradição, embora Moscou o tivesse proposto durante anos. “Não nego, nós o fizemos em primeiro lugar para conseguir a extradição de pessoas acusadas na Rússia de crimes graves, incluindo ataques terroristas, que tinham encontrado refúgio no território dos EUA e que este não nos entregou nem entregará nunca”, explicitou Lavrov. Mas ele deixou entre parênteses outros casos de extradição desejada – os de Victor But e Konstantín Yaroshenko, ambos acusados nos EUA de tráfico de armas.

Crise diplomática entre Brasil e EUA

As revelações do ex-analista da Agência Nacional de Segurança (NSA) tiveram repercussão especial no Brasil. Não apenas porque o jornalista que recebe os arquivos de Snowden, Glenn Greenwald, trocou Nova York pelo Rio de Janeiro para escrever, mas também porque afetaram a própria presidenta. Na primeira semana de julho, um mês apenas depois de The Guardian ter publicado que os Estados Unidos interceptavam comunicações em qualquer parte do planeta, o Brasil soube que os telefonemas e e-mails de milhões de seus cidadãos apareciam nos registros da NSA. Houve condenação, mas também cautela por parte do governo Rousseff, até que em setembro um programa de televisão, que teve a colaboração de Greenwald, revelou que também foram espionados os e-mails e telefonemas da própria presidenta e de seu círculo de colaboradores, além dos computadores da Petrobrás. Rousseff deixou clara sua indignação, cancelando sua visita oficial aos EUA que estava prevista para outubro, e, juntamente com seus ministros, insistiu na ideia de que o episódio era um caso claro de espionagem econômica, distante da luta contra o terrorismo. A presidenta passou semanas pedindo explicações que, pelo menos publicamente, não chegaram à população brasileira. População esta que, com quase 1,5 milhão de assinaturas através do site Avaaz.org, está se mobilizando para pressionar o país para que conceda asilo político a Snowden.

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Lucía Abellán, Patricia Tubella, Juan Gómez, Eva Saiz, Miguel González, Ignacio Cembrero, Elena Vicéns e María Martín, do El País