Sete meses atrás, o mundo começou a tomar consciência que as operações de vigilância da Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA) envolviam a vida de milhões em todo o mundo, reunindo informações a respeito de suas chamadas telefônicas, e-mails, amigos e contatos, como passam seus dias e onde passam as noites. O público ficou sabendo de detalhes do abuso de autoridade da agência, que se excedeu nas suas atribuições, causando uma onda de indignação nas mesas de jantar e nos gabinetes do Congresso, que talvez comece finalmente a limitar tais práticas.
As revelações já levaram dois juízes federais a acusar a NSA de violar a Constituição (embora um terceiro tenha considerado a rede de vigilância dentro da lei, infelizmente). Uma comissão nomeada pelo presidente Barack Obama emitiu um poderoso indiciamento dos casos de invasão de privacidade cometidos pela agência, recomendando uma ampla reforma em suas operações.
Tudo isso é decorrência inteiramente das informações oferecidas a jornalistas por Edward Snowden, ex-prestador de serviços da NSA que roubou uma imensa quantidade de documentos confidenciais depois de ter se desiludido com a voracidade da agência. Snowden reside agora na Rússia, fugindo das acusações de espionagem e roubo por parte dos americanos e enfrenta a perspectiva de passar o resto da vida desconfiado da própria sombra.
Levando-se em consideração o imenso valor das informações reveladas por ele, e os abusos que denunciou, Snowden merece algo melhor do que uma vida em permanente exílio, medo e fuga. Talvez ele tenha cometido um crime, mas prestou um grande serviço ao país. É hora de os EUA oferecerem a ele um acordo ou alguma forma de clemência permitindo que volte para casa, enfrentando uma punição substancialmente menor em decorrência de sua atuação como dedo-duro e contando com a esperança de levar a vida defendendo a privacidade e a supervisão da descontrolada comunidade de espionagem.
Snowden é acusado de violações da Lei de Espionagem, divulgação não autorizada de informações confidenciais e uma acusação de roubo de propriedade do governo. Essas três acusações trazem sentenças de 10 anos de prisão cada e, quando o caso for apresentado a um júri para o indiciamento, é certo que o governo tentará acrescentar novas acusações, provavelmente chegando a uma sentença de prisão perpétua que Snowden tenta evitar.
Abusos
O presidente disse, em agosto, que Snowden deveria voltar para casa e enfrentar a Justiça, indicando que, se ele quisesse evitar as acusações criminais, bastaria ter relatado os abusos aos seus superiores, agindo, em outras palavras, como dedo-duro. “Se ele temia que essa fosse a única maneira de levar esse conhecimento ao público, eu assinei uma ordem executiva – muito antes do vazamento das informações – protegendo pela primeira vez os delatores na comunidade de espionagem”, disse Obama. “Assim, havia outros rumos a seguir para alguém que estivesse com a consciência abalada, acreditando na necessidade de questionar as ações do governo americano.”
Na verdade, a ordem executiva não se aplicava aos prestadores de serviços como Snowden, limitando-se aos funcionários das agências de espionagem, o que significa que ele não teria direito à proteção. Além disso, Snowden disse recentemente ao Washington Post que chegou a informar suas preocupações a dois superiores da agência, mostrando o volume de dados reunidos pela NSA, mas eles nada fizeram – a NSA diz não haver provas disso. Isso ocorreu porque, com toda a certeza, a agência e seus líderes não enxergam tais programas de coleta de dados como um abuso e jamais teriam agido em função das preocupações de Snowden.
Retrospectivamente, Snowden tinha razão em acreditar que a única maneira de dedurar esse tipo de operação de espionagem seria denunciá-la ao público e deixar que o furor resultante se encarregasse de fazer o trabalho que seus superiores se recusaram a levar a cabo. Além dos esforços maciços de coleta de dados na internet e na telefonia, eis aqui algumas das violações reveladas por ele e as medidas legais provocadas por tais denúncias.
1) A NSA violou leis federais de privacidade – ou excedeu os limites de sua autoridade – em milhares de ocasiões por ano, de acordo com auditoria interna da própria agência.
2) A agência invadiu os sistemas de comunicações dos maiores centros de dados do mundo, o que permitiu a ela espionar centenas de milhões de contas de usuários, enfurecendo as empresas de internet donas desses locais. Muitas dessas empresas estão agora buscando formas de instalar sistemas que a NSA ainda não seja capaz de invadir.
3) A NSA prejudicou sistematicamente os sistemas básicos de criptografia na internet, tornando impossível saber se importantes informações médicas ou bancárias são realmente de caráter privado, lesando empresas e atividades que dependem dessa confiança.
4) As informações divulgadas por Snowden revelaram que James Clapper Jr., diretor nacional de espionagem, mentiu ao Congresso quando depôs em março e disse que a NSA não reunia dados sobre milhões de americanos. Nada se falou a respeito de uma punição a ele.
5) O Tribunal de Vigilância e Espionagem Estrangeira condenou a NSA por oferecer informações enganosas a respeito de suas práticas de vigilância, de acordo com uma decisão que chegou ao conhecimento do público graças aos documentos de Snowden. Uma dessas práticas violava a Constituição, de acordo com o presidente do tribunal.
6) O juiz de um distrito federal decidiu, semanas atrás, que o programa de coleta de registros telefônicos é, provavelmente, uma violação da Quarta Emenda da Constituição dos EUA. Ele descreveu o programa como “quase orwelliano” e disse não haver provas de que ele tivesse impedido qualquer ato terrorista iminente.
Prejuízos
O grande batalhão dos críticos de Snowden diz que ele provocou profundos estragos nas operações de espionagem dos EUA, mas nenhum deles apresentou provas mostrando que as revelações feitas por ele teriam de fato prejudicado a segurança do país.
Muitos dos programas de vigilância em massa denunciados por Snowden funcionariam com a mesma eficácia se tivessem sua abrangência reduzida e fossem submetidos a uma rigorosa supervisão externa, de acordo com o recomendado pela comissão presidencial. Quando alguém revela que funcionários do governo infringiram a lei de maneira deliberada e rotineira, essa pessoa não deve enfrentar a prisão perpétua nas mãos desse mesmo governo.
É por isso que Rick Ledgett, líder da força-tarefa da NSA para as informações divulgadas por Snowden, disse à CBS News que pensaria em oferecer anistia ao delator se ele parasse de divulgar novas informações.
E é por isso que o presidente Barack Obama deve pedir a seus assessores que comecem a procurar uma forma de acabar com a difamação contra Snowden e tentar lhe oferecer algum incentivo para que ele volte para casa.
Leia também
Snowden e Dreyfus: o papel dos jornais – Alberto Dines