O governo americano ainda reluta em moderar as consequências do evento surgido a partir das declarações de Edward Snowden, para um desfecho, se possível, menos turbulento. A mídia americana começa a divulgar opções para um controle de danos alternativo (ver aqui). A instituição pública NSA (National Security Agency) começa a ter suas práticas questionadas por juízes federais. Em cenário mais amplo, poder-se-ia dizer, até, que a situação revela um tremendo “me engana que eu gosto”, pois se os órgãos governamentais não podem mentir ao público, equivalente obrigação não afetaria as empresas prestadoras de serviço contratadas e terceirizadas por eles próprios. E os fundadores de uma Constituição que contém apenas cerca de quatro mil palavras, se e onde estiverem, hoje, observariam a tudo abismados.
As emendas à Constituição norte-americana, especialmente de números 1ª a 10ª, são chamadas de Bill of Rights. Significa dizer que se trata de uma série de garantias individuais aos cidadãos contra eventuais abusos do poder estatal. A 4ª emenda à Constituição, cuja redação foi proposta ao final do século 18, determina – de forma clara e simples – a inviolabilidade de dados e da vida pessoal dos cidadãos. Revela, em verdade, uma antevisão magnífica de organização social pelos chamados founding fathers, ou os “pais fundadores” dessa nação, para situações que poderiam ocorrer – e ocorrem, na prática – mais de duzentos anos depois.
Todavia, ao mesmo tempo em que os founding fathers continuam sendo venerados – não haveria cidadão norte-americano que se opusesse aos criadores dos princípios de sua organização social (ainda que se faça um aparte ao direito de portar armas de fogo, porque, séculos atrás, seria óbvia a ilação de que a garantia individual em jogo seria diversa) – os governos instituídos, com a particularidade daquele sistema eleitoral, fingem desconhecer, ou elaboram subterfúgios conjunturais, de forma a rasgar o conteúdo valioso – porque de simples entendimento – da 4ª emenda constitucional. Diz-se: não se pode violar dados ou a privacidade dos cidadãos.
Agentes sociais
Os Estados Unidos da América desenvolveram e fizeram valer, ao longo do tempo, uma regra legal interessante, por meio da qual as autoridades governamentais não podem mentir aos cidadãos. Equivale dizer: se a autoridade pública mente aos cidadãos, seria o caso de derrubar até presidente, Richard Nixon que o diga. E mais: documentos estatais têm que ser divulgados ao público. Mas o poder público reage com a sua vontade de poder, diria Nietzsche. Se as instituições públicas não poderiam mentir ou deveriam prestar contas ao cidadão, o mesmo não se aplicaria aos prestadores de serviço terceirizados e contratados pelos próprios órgãos públicos.
Não seria necessária uma pesquisa criteriosa para perceber que, hoje, exército, marinha, aeronáutica, Nasa, NSA, a secretária de Defesa, a de Agricultura e que tais órgãos e agências estatais, todos possuem prestadores de serviço terceirizados para a consecução de seus projetos. A empresa Lockheed Martin atua em quase toda a esfera estatal, inclusive para a NSA. Ou algo semelhante ocorre com os competidores: Raytheon, Boeing, BAE Systems, General Dynamics, entre outras.
Importa dizer, no caso Snowden, que a NSA não poderia, em tese, ser sabatinada em público porque suas atividades são desenvolvidas por empresas privadas. Não haveria a divulgação de documentos aos cidadãos porque tais documentos pertenceriam aos projetos das empresas contratadas. A instituição pública “lavaria as mãos”, sob o pretexto de que se trata de segredo comercial de agente econômico privado. E a pergunta que se faz é a seguinte: até quando a sociedade norte-americana irá continuar se enganando? Esse novelo, entretanto, estaria começando a ser desenrolado por alguns agentes sociais porque, como disse Nelson Rodrigues, é mais difícil sustentar o óbvio.
Mudança na forma fatos
Conforme indicado no link acima, o jornal The New York Times já apresenta, em editorial, posição e críticas contundentes a todo o episódio iniciado pelas declarações de Snowden. Afirma que a agência NSA se excedeu no uso de suas atribuições legais, a ponto de indignar toda a população. Afirma, ainda, que, finalmente, o Congresso deverá começar a limitar tais práticas. Dois juízes federais norte-americanos já acusaram a NSA de violar a Constituição do país.
Sob toda uma pressão inarredável, o presidente Barack Obama designou a formação de uma comissão para estudar uma reforma no modo de operação da agência. A mudança na forma de lidar com os fatos é mais clara quando se analisa as posições do presidente norte-americano. Inicialmente, logo após o surgimento do incidente, Obama foi claro ao se pronunciar que o “dedo-duro” do Snowden deveria voltar ao país para enfrentar a justiça e as acusações criminais. Para transparecer uma imagem benevolente, afirmou, ainda, que, para os crimes de espionagem, ele, presidente, havia baixado uma diretiva por meio da qual bastaria Snowden relatar eventuais abusos aos seus superiores.
Mas Obama se esqueceu do tal “me engana que eu gosto”. A Snowden, como empregado de empresa terceirizada pela NSA, não se aplicaria a lei de espionagem, estatuto válido apenas para funcionários do governo. E ainda que a lei lhe aplicasse, poderíamos considerar: algum diretor da empresa terceirizada ou da agência estatal iria estancar o projeto por causa do relato de um prestador de serviço qualquer? A resposta seria não. Nenhum responsável pelo projeto da NSA tomaria alguma atitude, agora que se estaria a ponto de concluir o inédito computador quântico, de quebrar toda a criptografia dos sistemas operacionais mundo afora… O que leva o The New York Times a concluir que apenas por meio da divulgação pública dos abusos e violações constitucionais pela NSA a denúncia de Snowden seria eficaz.
Atualmente, o diretor da NSA, funcionário público, este indivíduo, sim, sujeito à prisão perpétua para as violações cometidas, já propõe uma anistia a Snowden, caso ele pare de divulgar mais informações – conduta nitidamente voltada aos seus interesses pessoais; e a mídia começa a sugerir opções para que o presidente Obama encerre as acusações contra Snowden e ofereça proteção para que ele volte aos Estados Unidos da América.
Se os founding fathers estivessem de alguma forma presentes, com o desenrolar dos fatos que se nos apresenta – parece até que há dedos deles nessa mudança –, conclui-se, inevitavelmente: os criadores dessa Constituição visionária, para a organização da vida de uma sociedade, não jogariam a toalha tão facilmente.
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Eduardo Ribeiro Toledo é advogado e escritor