Minha mochila, carregando um computador e uma câmera fotográfica, era motivo de inquietação em Beirute, nos arredores de Haret Hreik. Dias atrás, um carro-bomba explodira no local em que eu estava, a trabalho, recolhendo informações para minha reportagem sobre a organização xiita Hizbullah. Mais preocupante, porém, eram as fotografias que eu tirava, razão pela qual fui detido por esse grupo por quase duas horas em um de seus escritórios, ao sul de Beirute. Mantive silêncio sobre o incidente, ocorrido no sábado, para evitar novos problemas com o Hizbullah, considerado por Israel como terrorista.
A princípio, a abordagem foi feita por um jovem em uma motocicleta, que me perguntava agressivamente a razão de eu estar ali, fotografando. As explicações não lhe convenceram, e em minutos uma multidão havia se reunido nos arredores. A câmera, o passaporte e o celular me foram tomados por jovens que se identificaram como integrantes do “Exército do Povo”, ligados ao Hizbullah. Um líder do grupo me forçou a subir em uma motocicleta. Fui levado para o quartel na garupa de um militante. Fui mantido em uma pequena sala empoeirada, sentado em uma cadeira. Ao tentar abrir as janelas, fui instruído – com pouca delicadeza – a ficar parado e a não tentar me comunicar.
Durante boa parte do tempo, um líder que se identificou como Abu Fadal sentou-se comigo, me oferecendo café, cigarro e me chamando de “convidado”. Fumamos, enquanto ele dizia “ma takhaf, ma takhaf”. “Não tenha medo”, em árabe. Mas, quando ele me deixava sozinho, eu inspecionava a mesa diante de mim, à procura de qualquer informação.
Realidade complicada
Havia, ali, o que pareciam ser duas vendas pretas. Torci muito para não ser obrigado a usá-las. Após a abordagem agressiva, fui tratado com cordialidade durante todo o tempo, assegurado a cada dez minutos de que seria libertado em breve. O diretor da instalação veio duas vezes me acalmar, recusando, porém, todos os meus pedidos para telefonar à embaixada brasileira.
Na pequena sala, sem meus pertences, tentava em vão elencar as possibilidades de ação. Recusei o segundo cigarro e o segundo café. Em sua última visita, o chefe me trouxe de volta o computador, o passaporte e o celular confiscados. Segundo ele, meu erro foi achar que poderia andar por um bairro xiita sem pedir a autorização dessa organização.
A explicação dá conta da complicada realidade social no Líbano, em que há um segundo Estado, paralelo, capaz de deter um jornalista no exercício de sua função. Na saída, os milicianos me pediram desculpas e finalmente me deram, sorrindo, as boas-vindas ao país.
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Diogo Bercito, enviado especial da Folha de S.Paulo a Beirute (Líbano)