Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Vídeos de horrores

“Atenção: as imagens a seguir são extremamente fortes.” Não há traição nem mentira. O que se segue são espetáculos de horror retirados da barbárie promovida pela crueldade de criminosos no Maranhão. Corpos decapitados no presídio de Pedrinhas, criança pegando fogo no ônibus. Os vídeos publicados pelas páginas na internet da Agência Folha-UOLe da Veja foram oferecidos (por cidadãos comuns ou entidades, por isso “colaborativos”) aos veículos e lincados em notícias nas manchetes. Na verdade, as publicações contrariam o código de ética dos jornalistas brasileiros, que repudia “divulgação de caráter mórbido e contrário aos valores humanos”, e também vai contra a legislação da informação, que prevê liberdade, mas também “proteção da dignidade”. Se se pode considerar um “aviso” antes das imagens, evita-se a surpresa, mas sobra cinismo. Durante a semana, as postagens com horrores em movimento foram “as mais lidas” nas duas páginas. Que mal faz expor corpos ou desesperos tendo milhares de cliques a mais?

A resposta é simples e pode suceder outra questão: algum dos jornalistas publicaria esse cenário de inferno se nele estivesse envolvido um familiar ou amigo, algum empresário, político, alguém que poderia mover processo pela exposição? É evidente que não. Veículos sensacionalistas – e não seria, em princípio, o caso desses grupos jornalísticos – fizeram história por publicar imagens de pessoas já sem direitos, pobres, marginais, condenados pela Justiça ou pela falta de voz. No conjunto de pessoas amontoadas numa cadeia, ou em um transporte público lotado, raramente estão incluídos bem nascidos, com acesso a advogado ou à justiça. Sob o silêncio, por ora, do Ministério Público, das entidades de classe, do governo e não-governamentais, pode-se publicar o que bem entender. Sem regulamentação na comunicação brasileira, pedidos de vistas de uma publicação são chamados de censura pelos empresários, os donos do jogo.

Menina em chamas

Às infâmias: a primeira, publicada no dia 7 de janeiro com o título de “Presos filmam decapitados em penitenciária no Maranhão; veja vídeo”, traz descrição das cenas dentro do presídio de Pedrinhas. As barbaridades ocorridas no local foram objeto de investigação do Conselho Nacional de Justiça e despertaram atenção da mídia com relatos de guerra entre facções, estupros de familiares de presos, mortes a cada dia. O vídeo foi enviado pelo sindicato dos trabalhadores da penitenciária. Quem trabalha no lugar, imagina-se, está de mãos atadas com a ineficiência das instituições e quer criar alguma forma de sensibilizar a opinião pública. O incompreensível é um órgão de imprensa, a serviço do jornal com maior circulação do Brasil, dar de ombros para a ética e descobrir que a cobertura no Maranhão é mais complexa do que veicular vídeo de terceiros. O jornalismo se surpreendeu com Pedrinhas porque sempre ignorou que aquele lugar existia. Mesmo com as denúncias de familiares, limitou-se a declarações oficiais. E, depois, a um vídeo com cabeças separadas de corpos e presos a sorrirem com celulares nas mãos.

Na segunda infâmia, no dia 9 de janeiro, a página da Veja (cuja revista impressa é a de maior circulação do país)na internet comete um dos maiores absurdos da história recente do jornalismo brasileiro nestes tempos de democracia ao publicar um texto com vídeo (das câmeras de segurança do ônibus) do ataque de criminosos às pessoas dentro do coletivo. Ao final, o vídeo traz a menina, que viria a falecer, em chamas. O estupor com a ação criminosa não se encerra com as imagens. No entanto, segundo preconiza a Agência de Notícia pelos Direitos da Infância (Andi), a cobertura do caso isolado agride a imagem, revitimiza crianças e famílias, e não colabora com a sociedade. “O jornalista deve tomar o cuidado para suprimir todos os detalhes e imagens que possam levar à identificação da criança ou do adolescente, de seus parentes ou do lugar onde mora”, recomenda a agência, que lembra o respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Em “Mídia e Violência” (2006), a agência mostra que metade das reportagens publicadas no Brasil têm essas características.

O pior legado

Com as publicações, os veículos ultrapassaram as fronteiras dos horrores, já denotados nos conceitos, por inúmeros autores, a respeito de sensacionalismo ou showrnalismo (com a exploração desmedida dos sentidos a fim de alavancar audiência). O jornalismo on-line, onde se pressupõe convergência de conteúdo multimídia, movido pelo instantâneo e pela interatividade, não pode dispensar o que é mais caro ao ofício (e à credibilidade das empresas): apuração em profundidade e bom senso. Numa época de crise do jornalismo impresso, espera-se que a imprensa com suas novas tecnologias garantam os parâmetros éticos que deram papel social à comunicação, mesmo quando só viviam os veículos tradicionais.

Publicar os vídeos e expor pessoas dessa forma levam ao pessimismo com relação ao futuro de sites, onde tudo se hospeda, tudo se salva, e depois se exclui, para que mais cliques garantam mais anunciantes. Curiosidade mórbida não é fenômeno apenas dos nossos tempos nem apenas do Brasil. Mas, no mundo virtual, pode se recomendar, compartilhar, curtir, retuitar, expandir… E, em relação a isso, a comunicação é sem precedentes. Ao contrário de simplificar, as facilidades aumentam a obrigação de profissionais e empresas de comunicação. “Atenção, as imagens são fortes” é um recado frio, tanto quanto um clique. Frio como fazer jornalismo de longe (com poucos repórteres colaboradores, sem sucursais), diante de uma criança incendiada em movimento. Aliás, nesta semana, também, a afiliada da Record no Ceará veiculou um estupro de uma menina de nove anos. As imagens foram retiradas do ar após determinação da procuradoria do Estado.

Como não enxerga a complexidade do adoecimento social, mesmo grandes sites começam o ano, em si, boquiabertos, cúmplices e despreparados para contar histórias, esclarecer, alertar, informar, interpretar. Não seriam necessárias imagens (deveriam ser proibidas). O jornalismo pode colaborar com a sociedade com mais ação investigativa. Além disso, no mundo entorpecido e doente dos criminosos, a publicação desses materiais confere status de poder. Agência Folha, Veja e quem mais copiou os vídeos para explorar imagens trágicas trazem para si a coisificação ilusória no lugar do realismo pretendido. Tratam gente como objeto e sua função torna-se distorcida, separada do todo. Crises são tratadas como capítulos de novela ou partes de um filme de terror. E não haveria de ser isso. O campo de ação forma-se, na realidade, de humanos abandonados à própria sorte pelas políticas públicas. Mas, como se pode constatar, são tratados como materiais a serem vendidos e explorados on-line, como se fossempeças publicitárias em que cada clique viabiliza o publicado. Não adianta, depois, simplesmente deletar o original. A multiplicação das imagens cruéis já eternizou o pior tipo de legado que o jornalismo pode deixar.

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Luiz Claudio Ferreira é professor de Jornalismo