Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Enquadrando o Maranhão

No domingo (12/1), o jornal O Globo e a revista Veja publicaram matérias extensas sobre os recentes acontecimentos no estado do Maranhão. O diário da família Marinho reivindicou mais uma vez mais rigor, lei e ordem, destacando a falta de investimentos nos presídios, a superlotação das celas, os maus tratos para com os encarcerados e uma entrevista com Gilmar Mendes, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Já o semanário da família Civita recorreu novamente ao sensacionalismo. Publicou a foto da menina Ana Clara, de seis anos, incendiada por bandidos quando descia de um ônibus em São Luís. A revista reforçou o coro da necessidade da construção de novos presídios e leis mais duras, como é de praxe sempre que um novo acontecimento como este “choca”, “escandaliza”, “estarrece a sociedade”, em expressões bastante utilizadas pela imprensa comercial, em seu esforço hercúleo de reverberação e produção de sentido nas notícias sobre crime.

Ambos os veículos tiveram como alvo a governadora Roseana Sarney, filha do ex-presidente da República e atual presidente do Senado Federal e aliado do Partido dos Trabalhadores (PT), desde os tempos da gestão Lula. O clã controla o estado Maranhão há quase 50 anos, desde quando José Sarney foi eleito governador, em 1966. Hoje, é um dos estados de pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil e talvez do mundo. Alheia a isso, a governadora afirmou, em entrevista recente, que as coisas por lá “vão muito bem” e que a violência só acontece por que “o Maranhão está rico”. Realizou licitações para a compra de camarões e sorvetes para o Palácio dos Leões e aguarda a reeleição no próximo pleito ainda este ano quando, através das arcaicas práticas do coronelismo e do cabresto, poderá ampliar, aprofundar e enraizar ainda mais (se isto for possível) as garras de sua família sobre o paupérrimo, explorado, miserável e abandonado povo maranhense.

Mudança de tom

Se em 2014 O Globo bate na família Sarney, no passado as coisas eram um tanto diferentes. As famílias Sarney e Marinho têm uma ligação histórica. Em 1986, quando o patriarca era presidente da República e Antônio Carlos Magalhães (ACM), ministro das Comunicações, a NEC Corporation, presidida por Mário Garnero, era a fornecedora de equipamentos de telecomunicações ao governo brasileiro há 20 anos. No entanto, ACM mandou suspender o contrato e a empresa passou a ter sérias dificuldades financeiras. Endividado, Garnero não resistiu às investidas e vendeu a NEC para a família Marinho. Então, o governo retomou a parceria com a empresa. A história está contada no filme “Muito além do Cidadão Kane“.

Proprietário da Rede Mirante, afiliada da Rede Globo no Maranhão desde 1991, consta que Sarney não deixava de visitar Roberto Marinho quando visitava o Rio de Janeiro, em seus tempos de presidente da República. Na biografia de Maílson da Nóbrega, o ex-ministro de Sarney revela que o ex-presidente não abria mão de consultar Roberto Marinho antes de nomear algum ministro:

“Saindo da sala, dei lugar a Antônio Carlos Magalhães, ministro das Comunicações e amigo tanto de Marinho quanto de Sarney. Pediu para que eu o esperasse. (…) Depois de alguns minutos, ACM deixou doutor Roberto, confirmando que o empresário ficara com uma impressão muito boa sobre mim. (…) De volta ao Ministério, ali pelas 6 da tarde, apenas 10 minutos depois de sair do escritório da Globo, fui surpreendido pela secretária. ‘Parabéns.’ Não entendi. (…) ‘O senhor é o novo ministro da Fazenda. Deu no plantão do Jornal Nacional.’Logo tocou o telefone. O presidente me convocava ao Palácio do Planalto. Quando cheguei, ele estava com o ato de nomeação em mãos, pronto.”

No entanto, após a adesão de Sarney ao governo Lula, O Globo e aVeja passaram a criticar o patriarca maranhense, sua filha Roseana e quejandos.

Voltando às reportagens de domingo (12/1), o texto de O Globo elogia iniciativas em presídios brasileiros, como a criação de suítes de motel para visitas íntimas e de cursos profissionalizantes na Casa de Detenção Urso Branco, em Porto Velho (RO); critica a aplicação de “apenas 12%” dos recursos destinados a infraestrutura penitenciária em 2012 e 2013; cita o investimento em “infraestrutura, capacitação de agentes penitenciários e ressocialização” em presídios do Espírito Santo e ainda a “revista humanizada, progressão de pena pela leitura e oferta de cursos profissionalizantes” em Goiás.

Já a Veja é mais explícita e previsível. Após descrever toda cena da morte da menina Ana Clara, ressaltando os requintes de crueldade e frieza dos bandidos para comover e indignar seus leitores da conservadora e atemorizada classe média, recorda as declarações insensíveis de Roseana Sarney, cita a terceirização do Complexo de Pedrinhas (onde presos foram decapitados) e o contrato do governo estadual com empresas de aliados da governadora para a administração do presídio, descreve o estado caótico das celas superlotadas e insalubres, para, finalmente, chegar à conclusão de que: “Cadeias são um mal necessário. Prender bandidos tem, sim, influência direta na queda da criminalidade.” Cita “diversos trabalhos internacionais” e uma pesquisa do Ipea, segundo a qual a elevação de 10% do número de presos reduz em o,5% os assassinatos. Ao término da reportagem, o semanário não perde a oportunidade de citar a (in)conveniência política entre Dilma e Roseana: “A presidente não pretende dispensar o apoio da governadora e de seu pai”, lembrando a tímida resposta de Dilma à crise maranhense: “Estou acompanhando com atenção a questão da segurança no Maranhão”, para encerrar com o habitual tom sensacionalista indignado e oportunista: “Ana Clara não andará mais de bicicleta, não se vestirá de novo de princesa nem irá à escola neste ano pela primeira vez. Mas é tranquilizador saber que a presidente acompanha tudo com atenção. E que o Maranhão vai muito bem, obrigado.”

Cadeia para quem?

Apesar de sugerir alternativas, mostrar indignação e exigir soluções na esfera da maior imposição de lei e ordem, em nenhum momento os textos questionam o modelo penal brasileiro de encarceramento da população jovem, negra, pobre e moradora de favelas e periferias brasileiras, o déficit histórico em Educação deste país e a criminalização da pobreza. Fala-se, isto sim, na construção de novos presídios através de parcerias público-privadas (para não falar em privatização). Na entrevista de Gilmar Mendes, quando questionado acerca de “penas alternativas”, o ex-presidente do STF cita o colar, a pulseira e outros mecanismos de monitoramento eletrônico, instrumentos do biopoder, o controle dos corpos negros e pobres como alternativa enviesada do nosso sistema penal em detrimento de investimentos na formação da cidadania, educação e inclusão.

Também não foi possível encontrar nas reportagens supracitadas qualquer menção à prioridade das políticas de Segurança Pública, que reprimem o tráfico de drogas apenas nas favelas e periferias e negligenciam quando um helicóptero recheado de cocaína é descoberto em uma fazenda mineira, de propriedade de um parlamentar federal, aliado do governador de Minas Gerais. Tampouco encontramos nas referidas matérias menções às práticas recorrentes e articuladas do nosso sistema judiciário e das polícias que tipificam, reprimem e condenam sobremaneira os crimes cometidos pelas camadas mais pobres de nossa sociedade, encarcerando pessoas enquadradas no perfil da “sujeição criminal”: o homem jovem, pobre, negro e favelado, enquanto são lenientes e coniventes com os delitos cometidos pelos chamados “cidadãos de bem” e “contribuintes de impostos ao Estado”.

O outro lado da prática do encarceramento em doses cavalares adotadas no Brasil há séculos são os autos de resistência praticados nas grandes cidades, um eufemismo para a matança indiscriminada praticada pelas polícias militares em todos os estados brasileiros, em que o pobre é a vítima preferencial. Em resumo: mata-se e prende-se cada vez mais pobres para que as classes média e alta possam ter uma maior sensação de segurança nas grandes cidades, consumam ainda mais nas lojas e shoppings de Rio, São Paulo (onde negros e pobres só podem entrar caso estejam uniformizados para trabalhar e são impedidos de entrar para passear, como o fazem os “cidadãos de bem”) e outras grandes cidades mundo afora, gerando lucros exorbitantes para os grandes oligopólios privados internacionais.

Para fechar este círculo vicioso de preconceito, exclusão, extermínio e lucro, não é exagero lembrar que, muitas vezes, tais oligopólios exploram as mãos-de-obra escrava e infantil e possuem ainda tentáculos no grande comércio internacional de drogas. E isso por que não falamos aqui em redução da maioridade penal e pena de morte…

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Pedro Barreto é jornalista e doutorando em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ