Vivemos o tempo da sobrevivência e persistência de um tipo de censura que vem de épocas anteriores à da ditadura militar e é inerente à atividade capitalista: a censura privada, comercial. Um tipo insidioso, furtivo, covarde, dissimulado, hipócrita e perigoso de censura que ultimamente joga com o emprego de milhares de colegas jornalistas e por isso é tão danosa. Principalmente em um ano eleitoral tão importante.
Na ditadura militar, trabalhei num grupo de comunicação sob pressão de duas censuras: a estatal do regime militar e a censura interna, comercial, da cúpula dirigente da emissora de rádio, uma das principais rádios de São Paulo. Como os donos da empresa eram poderosos e donos de múltiplos ramos de atividade comercial, industrial e até agropecuária, a cada interesse contrariado era chamado à sala do diretor comercial para ser pressionado a retirar a notícia ou negá-la.
Assim, além de responder ao index do governo federal dos militares assinado por uma tal delegada Solange, tínhamos que responder aos interesses supostamente feridos dos anunciantes. Para dar um exemplo: uma notícia crítica contra frangos de granja contrariava diretamente os interesses do gigante comercial Sadia e entrava, assim, no index da censura privada limitando perigosamente a capacidade informativa do veículo. Eram inúmeros os casos em que o diretor comercial me chamava para aumentar as proibições dado o grande número de interesses em jogo da corporação. Como redator, desde cedo acostumei-me a rezar pela cartilha dos patrões para manter o meu empreguinho e pequeno salário a que fazia jus. E assim me mantive durante toda a atividade jornalística até recentemente, ouvindo o que a estupidez dos diretores comerciais de rádio e outros tipos de mídia nos constrangiam.
Uma nova realidade
Recentemente tive a surpresa de ouvir de uma dessas toupeiras numa rádio popular que não deveria programar música de qualidade porque o povo não estava preparado e não queria ouvir, seguido da ameaça direta da perda do meu emprego. Outra coisa da ditadura militar que me chamou a atenção era a facilidade com que podíamos investir contra os políticos de carreira, os parlamentares de todas as áreas porque eles não dispunham de poder de polícia como os chefes de executivos militares. Começou muito cedo a erosão pública dos parlamentares diante de uma forma covarde e acintosa de criar analfabetos políticos (nos moldes preconizados pelo dramaturgo alemão Bertold Brecht, que acrescentava que a cadela do fascismo estava sempre no cio).
Ao pequeno espaço informativo disponível na época se somava a facilidade com que se achacava a moral dos políticos formando o senso comum direitista de que um político bom é um político na cadeia. E esse fenômeno não ocorreu apenas na ditadura local, mas na vivência prática do jornalismo mundial a que se deve essa insidiosa forma crítica de se ver a classe política. Hoje, a prática é comum no mundo todo.
Mesmo com a abertura do espaço informativo e com a queda da censura oficial restou o grande index publicitário e, com o tempo, o jornalismo foi perdendo espaço de novo para formas de relações públicas que se transformou atualmente. O jornalismo passou ultimamente a truque mercadológico de achaque dos não patrocinadores para que se tornem fiéis clientes das corporações midiáticos atuais, um dos traços de “caráter” do jornalismo vigente. No rádio AM, essa erosão de credibilidade e dignidade jornalística, fruto da estupidez dos diretores comerciais, é muito mais evidente do que na imprensa escrita por exemplo.
Sem regras, nem freios
A prática assimilada do ódio de classe nas redações também é outro “traço” do jornalismo das grandes corporações de mídia no Brasil, como se não bastasse a censura comercial e o elitismo das relações públicas das emissoras de mídia nas quais hoje se inscreve a internet. O que se observa no fenômeno do rolezinho de classe, que é uma das expressões de apartheid social no Brasil, é outro exemplo desse tipo de ódio destilado pelas classes médias superiores.
A glamourização da profissão de jornalista e a enxurrada de novos profissionais todos os anos relativizaram a preocupação com a qualidade de informação e o fato é que todos esses vícios apontados aqui têm contribuído para a pressão com que os novos colegas sofrem dos patrões para que mantenham os vícios do espaço informativo do jeito em que estão. Apenas gostaria de acrescentar a essas observações uma perigosa inércia do poder público do executivo federal com relação a impostura com que é tratado pela mídia sem que se tome qualquer medida política de restrição que equivalha na prática a uma autodefesa diante dos ataques do ódio de classe.
É visível, hoje em dia, uma tentativa de golpes à direita ao governo federal sem que se imponha um controle de mídia como é visto em várias partes da América Latina, a saber Argentina, Equador, Uruguai e Venezuela, que têm adotado controles democráticos de mídia na medida em que enfrentam oposição sistemática. Aqui no Brasil já passou da hora da adoção destes controles.
Dessa forma a cultura de vícios adquiridos com a persistência da censura comercial é um dos perigos atuais da democracia vigente, especialmente num ano em que os ataques às estruturas governamentais federais serão vistos e sentidos nos momentos pré-eleitorais como uma luta de UFC sem as mínimas regras de garantia de não violência e freios ao ódio de classe das elites.
******
Fausto José de Macedo é jornalista (Olímpia, SP)