É triste que pessoas que possuam espaços opinativos em veículos de comunicação, especialmente os de grande destaque, construam uma imagem falaciosa e pejorativa sobre os direitos humanos, prejudicando, assim, a afirmação desses direitos no país. Há muitos casos a se relatar, como os “programas policiais” apelativos e sensacionalistas em muitas TVs brasileiras. Mas aconteceram na semana iniciada em 3 de fevereiro pelo menos dois casos bastante notórios e repercutidos: da jornalista e apresentadora do Jornal do SBT, Rachel Sheherazade, e do colunista da Veja Rodrigo Constantino.
Em ambos os casos foram averbadas críticas diretas e equivocadas aos defensores de direitos humanos. Assim, demonstraram uma falta de conhecimento imensa sobre o conceito moderno de direitos humanos.
Para contextualizar o leitor:
No primeiro caso, da jornalista do SBT, foi defendida a ação de justiceiros na cidade do Rio de Janeiro, que bateram, despiram e acorrentaram um adolescente que alegadamente cometia assaltos na região do bairro de classe média do Flamengo. Disse a jornalista: “Aos defensores dos direitos humanos, que se apiedaram do marginalzinho preso ao poste, eu lanço uma campanha: façam um favor ao Brasil, adotem um bandido.”
No segundo caso, do colunista da Veja, relatou-se a dor da mãe de uma policial também do Rio de Janeiro, morta por um tiro durante o dever, e a alegada omissão de ONGs de direitos humanos em aparar a família da policial e em condenar a violência que a matou. Segundo Constantino: “É isso o mais revoltante de tudo. Bandidos matam inocentes ou policiais em serviço, e ninguém das ONGs dos direitos humanos aparece. Um bandido é vítima de alguma coisa, todos saem da toca e causam uma celeuma. Por que tanta seletividade? Por que esta preferência escandalosa pelos marginais?”
Incentivo ao ódio e à vingança
Ora, é compreensível que muitas pessoas, incluindo jornalistas e colunistas, tenham desconhecimento sobre o conceito moderno de direitos humanos e o que ele realmente significa.
Em esclarecedor artigo de 2007, o doutor em filosofia e professor do Instituto Berthier (Ifibe), de Passo Fundo (RS), Paulo César Carbonari afirmou: “… Direitos humanos são uma noção complexa e que guarda várias facetas e interfaces que articulam várias dimensões: jurídica, ético-moral, política, cultural, entre outras. Todas elas são complementares entre si e tornam a luta pela efetivação histórica dos direitos humanos um permanente processo de construção”.
Não existe uma “Lei Nacional de Direitos Humanos” para ser aplicada, tampouco há mecanismos que englobem garantias de afirmações específicas desses direitos. Os direitos humanos são pouco estudados nas escolas e nas universidades, e ainda pouco debatidos pela imprensa. Existe um “Plano Nacional de Direitos Humanos“, atualmente em sua terceira edição, que ainda tem se provado insuficiente em conscientizar a sociedade.
Mesmo assim, um “formador de opinião” não pode ser tão obtuso a ponto de fazer observações levianas, que minam os esforços de afirmação dos direitos humanos, como fizeram a jornalista e o colunista. O que fizeram foi apelar às paixões populares de revolta com a violência e incentivar o ódio e a vingança.
Esfera institucional
Claro que se entende a indignação popular com assaltos e assassinatos, e compreende-se que uma parte dos cidadãos, mesmo que errônea e ilegalmente, busque maneiras paliativas que consideram eficazes para se proteger da violência. Mas a incitação do ódio por esses formadores de opinião, em veículos de informação de grande repercussão e audiência, só serve para inflamar ainda mais a busca por recursos de violência. É lamentável e entristecedora a morte da policial no Rio. É lamentável também que assaltos e assassinatos continuem prejudicando a vida das pessoas, de qualquer faixa de renda. Contudo, é também lastimável a violência institucionalizada.
Pela noção de direitos humanos, toda vida tem o mesmo valor. Essa é uma noção institucional – não pessoal. Para uma pessoa, é óbvio e incontestável que a vida de um parente próximo lhe é mais importante do que a vida de um criminoso, por exemplo. E é claro que, se ameaçada, essa mesma pessoa pode, caso assim escolha, utilizar a violência para defesa pessoal ou até mesmo patrimonial.
O que não está claro para esses articulistas da grande imprensa é que não se deve institucionalizar as violações de direitos humanos. É aí que mora o grave equívoco que cometeram: de achar que ações justificadas no âmbito pessoal devam ser institucionalizadas. Nunca é demais ressaltar: os direitos humanos não são afirmados no âmbito pessoal, e sim, no institucional – essa é a única forma, quando corretamente compreendida, que a vida humana poderá ser percebida como valiosa pela sociedade. A vida de todos.
Democracia e direitos humanos
Quando uma pessoa em um momento de raiva ou insanidade comete um assassinato, seja de parentes, do assaltante, do vizinho, ela está cometendo um crime, não um atentado aos famigerados “direitos humanos”. É por isso, por exemplo, que existe conflito de interesses e proíbe-se um indivíduo de ser o juiz do criminoso que matou seu filho, ou um policial de investigar oficialmente a morte de seu irmão.
Isso difere, e muito, de quando um grupo armado, agindo em nome do bem social e de uma parcela apoiadora da sociedade, acorrenta um adolescente a um poste e o surra. Ou quando a polícia executa criminosos. Ou quando uma empresa aplica trabalhos forçados a seus empregados. Ou quando há discriminação contra minorias por parte de qualquer organização ou grupo. Há milhares de exemplos mais.
Não que o uso da violência seja sempre injustificável, mas há variações na forma como ela é efetivamente compreendido. Quando o Estado ou alguma instituição ignora, apoia ou comete tortura e vingança, estão sendo coniventes com a violação dos direitos humanos. Mais uma vez, é a institucionalização que ratifica abusos aos direitos humanos. ONGs de direitos humanos defendem os direitos humanos. A policial morta por um tiro durante o dever, por mais lamentável e triste que seja, possui o apoio institucional de sua corporação e também a simpatia e aquiescência de grande parte da sociedade.
O bandido preso ao poste, pelo contrário, só terá o ódio dos que acreditam no estúpido aforismo “bandido bom é bandido morto”. Não há instituição que o apoie, não há pensão para familiares, tampouco enterro com honras e nem mesmo a simpatia popular até dos que condenaram seu cárcere humilhante e seu espancamento. Cabe, aí, que ONGs de direitos humanos tentem aplicar os valores essenciais dos direitos humanos de que toda a vida tem o mesmo valor, e que as pessoas têm sim o direito à dignidade, ficando além das paixões populares que desprezam “a turma dos direitos humanos” ou os “defensores de bandidos” ou, pior de tudo, os que pregam “direitos humanos para humanos direitos”.
É um tema complexo e que aflora muito as paixões populares. Os direitos humanos preveem a liberdade de expressão e os colunistas podem sim falar o que lhes convier. Não se trata de proibir o que eles vão falar ou escrever. Trata-se, isso sim, de os profissionais da imprensa saibam resguardar os direitos humanos, dentro do seu papel no processo de construção e manutenção da democracia.
A professora da PUC-SP e procuradora do estado de São Paulo Flavia Piovesan foi muito coerente ao afirmar em diversos dos seus textos: “Não há direitos humanos sem democracia, tampouco há democracia sem direitos humanos.”
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Sérgio Spagnuolo é jornalista e mestre em Direitos Humanos pela PUC-SP