Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Convulsões sociais e ideologia elitista

Na recente história do Brasil, poucos anos tiveram um início tão conturbado quanto o atual. Mesmo levando em consideração que 2014, por ser o ano da segunda Copa do Mundo em nosso país e de eleições presidenciais, começou repleto de expectativas, é fato que poucos analistas imaginavam que os meses de janeiro e fevereiro seriam marcados por tantas convulsões sociais. Conforme a experiência nos tem mostrado, em tempos de acirramento de conflitos entre classes, a ideologia elitista da grande mídia tupiniquim, muitas vezes escamoteada pela hipocrisia cotidiana, tende a aflorar com maior intensidade.

Entre os exemplos recentes que corroboram as ideias expostas acima, podemos citar as tendenciosas coberturas dos “rolezinhos” (eventos convocados pelas redes sociais em que jovens da periferia combinam passeios em shopping-centres), da passeata do MST em Brasília e sobre a repercussão de uma foto divulgada no Facebook em que um jovem negro está acorrentado a um poste. Em todos os acontecimentos citados, salvo raras exceções, é fácil constatar que a atuação dos grandes meios de comunicação teve a clara intenção de manipular a realidade e, por outro lado, direcionar a opinião pública para um posicionamento contrário aos setores mais vulneráveis de nossa sociedade.

Segundo o Jornal da Band, os chamados “rolezinhos” são “invasões de jovens, em que os participantes dizem que o objetivo é apenas diversão, mas os encontros apavoram os lojistas e clientes, e frequentemente há registros de furtos e vandalismos”. Para Rachel Sheherazade, âncora do SBT Brasil, os membros dos “rolezinhos” são arruaceiros que se reúnem em locais privados e “tocam” o terror. “Será que só vamos tomar uma providência [contra os “rolezinhos”] quando os arrastões migrarem das periferias para os shoppings de luxo?”, questionou a jornalista, em uma nítida tentativa de criminalizar a população periférica.

Alógica racista

Em suma, a mensagem das classes dominantes é patente: negros e pobres só são socialmente aceitos quando ocupam posições subalternas ou os espaços periféricos a eles destinados; sua presença nos templos do consumismo moderno, os shoppings centers, não deve ser, em hipótese alguma, tolerada.

Em relação à manifestação do MST na capital federal, que acabou em confronto entre os integrantes do movimento e policiais, os “especialistas” da mídia hegemônica mais uma vez despejaram todo o seu ódio àqueles que militam pelas causas sociais. Os noticiários da Rede Globo, por exemplo, foram marcados por várias imagens que apresentavam as “ações violentas” dos manifestantes. Sobre as causas do início do conflito, os grandes veículos privilegiaram a versão dos policias em detrimento dos argumentos dos trabalhadores rurais sem-terra. De acordo com Reinaldo Azevedo, os membros do MST promovem uma “guerra vermelha” e são responsáveis por “invasões de propriedades privadas no campo, o que afronta o estado de direito”. Entretanto, o articulista da Veja não menciona em seus artigos as denúncias de grilagens, assassinatos e utilização de trabalho escravo que são direcionadas contra os grandes latifundiários brasileiros.

Por fim, a imagem do adolescente negro acorrentado por “justiceiros” a um poste em um bairro nobre do Rio de Janeiro (uma prática que nos remete aos antigos pelourinhos) recebeu grande destaque na mídia hegemônica e também demonstrou a lógica racista que norteia as relações sociais em nosso país.

Em artigo publicado no Diário do Comércio, o filósofo Olavo de Carvalho chamou o jovem de “bandidinho estapeado” e “delinquentezinho”. “Num país que sofre de violência endêmica a atitude dos ‘vingadores’ é até compreensível. O Estado é omisso, a polícia desmoralizada, a Justiça é falha. O quê que resta ao cidadão de bem que ainda por cima foi desarmado? Se defender, é claro! O contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa coletiva […]. E aos defensores dos direitos humanos que se apiedaram do marginalzinho preso ao poste, eu lanço uma campanha: faça um favor ao Brasil, adote um bandido”, asseverou RachelSheherazade no SBT Brasil.

Coronelismo midiático

Já uma matéria da revista Veja destacou os delitos cometidos pelo jovem que foi amarrado ao poste. Porém, as longas fichas criminais dos “justiceiros” – que incluem acusações de estupro, lesão corporal e furto – não foram mencionadas pela publicação da família Civita e tampouco pelos seus congêneres midiáticos.

Diante dessa realidade cabe aqui uma pergunta capciosa: será que RachelSheherazade lançaria a campanha “adote um justiceiro”? Não por acaso o sindicato dos Jornalistas Profissionais do município Rio de Janeiro divulgou uma nota de repúdio à âncora do SBT por apologia à violência.

Ora, se todos os cidadãos se julgarem no direito de fazer justiça com as próprias mãos certamente retrocederíamos à barbárie. Ademais, lembrando o pensamento de Thomas Hobbes, o advento da civilização só foi possível quando os seres humanos renunciaram ao seu direito natural à violência e transferiram a prerrogativa de julgar a uma instância superior: o Estado com suas instituições.

Não bastasse toda essa atual cruzada conservadora, um evento marcado para o próximo mês pretende reeditar a perniciosa “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” como parte das “comemorações” pelos 50 anos do golpe militar.

Enfim, diante desses fatos, torna-se necessário questionar o porquê de a grande mídia brasileira geralmente apresentar uma visão unidimensional da realidade. Somente determinado ponto de vista tem espaço nas maiores emissoras de televisão e nos principais jornais e revistas do país. Opiniões divergentes ao status quosão propositalmente ignoradas.

Desse modo, é preciso democratizar os meios de comunicação para que os diferentes setores sociais possam ter a oportunidade de defender os seus valores políticos. Em última instância, uma verdadeira democracia passa, impreterivelmente, pelo fim do coronelismo midiático.

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Francisco Fernandes Ladeira é especialista em Ciências Humanas: Brasil, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de Geografia em Barbacena, MG