A Constituição garante a todo cidadão brasileiro a liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação (art. 5, IX), assim como a total, plena e absoluta manifestação do pensamento (art. 5, IX). Isto significa que nada (e ninguém) pode impedir qualquer pessoa de dizer o que quiser, quando quiser e com as palavras que quiser. O exercício do pensamento e de expressão está imune, inclusive, a qualquer tentativa de censura ou a controle, por meio de concessão ou de licença.
Não falta, entretanto, quem tente, com o poder do argumento, encontrar imperativos categóricos que delimitariam (numa espécie de direito natural) o uso da liberdade de pensamento e de expressão. Este moralismo cultural acaba assim usando a liberdade plena de expressão para argumentar que até a liberdade de expressão tem seus limites.
Isto foi o que fez o colunista da Folha de S.Paulo Janio de Freitas em sua coluna de domingo (9/02/14, p. A10), intitulada “Uso sem moderação”. Ao comentar opinião da jornalista do SBT Rachel Sheherazade em sua “suposta apologia à violência”, Janio de Freitas acaba criticando “quem não exerce o direito da liberdade de expressão com moderação”, uma vez que em suas palavras “o direito à liberdade de expressão não inclui o direito à liberdade de fazer com ela o que quer que seja”.
Avingança final
A frase de Janio de Freitas indica, à primeira vista, que ele acredita que o cidadão brasileiro deve usar o direito de se expressar desde que este cidadão saiba o que está fazendo. A sustentação deste argumento está, de acordo com a lógica freitista, de que a própria Constituição impede o exercício de qualquer expressão que atente contra o Estado de Direito.
O silogismo do jornalista acaba misturando a discussão sobre a necessidade do Estado de Direito (que é óbvia e natural em todos os povos civilizados do planeta) com o problema da sociedade analisar e refletir se o “Estado de Direito” está atendendo às necessidades de segurança, saúde, alimentação, bem-estar etc. desta sociedade. São, portanto, duas discussões. A primeira, levantada pela jornalista do SBT, trata dos direitos dos cidadãos, assegurados pelo Estado de Direito, e o risco deles estarem sendo sonegados pelo Estado de Direito da barbárie, promovido por criminosos e por “justiceiros fora-da-lei”.
Fica claro que ela suscita o problema de que a criminalidade crescente deve-se à omissão e à incompetência do Estado, que deveria assegurar as necessidades básicas da população. E, na sua visão, é lícito ver que a população acaba fazendo justiça com as próprias mãos. O que ela faz é bem simples. Sheherazade usa a liberdade de expressão e de pensamento para expressar, em certa medida, a convicção de que a insurreição dos justiceiros seria compreensível para assegurar em tese o próprio Direito à Vida e à Liberdade, já que, ao que parece, o aparato estatal não consegue mais dar conta dos seus deveres.
Quem quiser pode condenar, criticar ou contestar os argumentos da jornalista. Mas, como bem diria o filósofo Voltaire: “Não concordo com uma só palavra do que disse [a jornalista Sheherazade], mas defenderei até amorte o direito [dela] falar.” Não há dúvida de que a jornalista é seduzida pela tentação de libertar sua camada do cérebro reptiliano e sair convocando todos para a vingança final do Armageddon (anunciada, aliás, pela bíblia).
Liberdade “total”
O comportamento dela é, em certa medida, previsível, pois as insurreições e as revoluções sempre se iniciam quando “o estado das coisas” se torna insuportável e o estado de direito não consegue mais servir como represa para a insatisfação popular e para o empoderamento da barbárie. O problema acaba sendo o tom moralista, pequeno-burguês, de Janio de Freitas. Pela lógica de seu pensamento, ele está dizendo três coisas. A primeira é que “quem não sabe o que faz com a liberdade de expressão não pode ou não deve se comunicar”. A segunda é de que existem, em tese, cidadãos que não têm “noção” do que falam e do efeito que suas palavras causam (pensamento do tipo “brasileiro não sabe votar”). A terceira é de que a liberdade de expressão tem seus limites.
Todas as três sentenças não passam de literatura vitoriana tardia, feita por quem se acha superior aos demais cidadãos e que se considera “melhor do que os outros” para predizer que o cidadão deve usar a liberdade “com moderação”. Vê-se, aliás, que Janio parece saudoso de um tempo passado em que havia uma suposta “liberdade de expressão pura” já que, em suas palavras, “o uso da liberdade de expressão degenera com amplitude e velocidade”.
Ele não diz em que época e em que lugar as pessoas só falavam coisas “sábias” e “racionais” e como estas pessoas sabiam que estavam falando apenas coisas que valiam a pena ser pensadas e ditas. Não importa. A felicidade está em saber que Janio de Freitas ou Rachel Sheherazade poderão abordar este assunto novamente, a qualquer momento, já que o Estado de Direito no Brasil garante aos dois a liberdade “total” de pensamento e de expressão.
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Leandro Marshall é jornalista, professor e escritor