Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sheherazades podem falar livremente na TV?

Como não vejo TV, só descobri agora que o velho discurso “pau nos bandidos” não é mais exclusividade de apresentadores acima do peso, com cara de maus e vozes nervosas. Para total surpresa minha, um certo jornal do SBT pôs nesse papel uma apresentadora que, além de bonita, esperta e ótima atriz, ainda atende pelo excitante nome de Sheherazade. Pois essa inesperada figura espinafra o pessoal dos direitos humanos (“adotem um bandido”), chama menores infratores de bandidos e afirma que a “sociedade indefesa” tem o direito de tomar a si o combate violento da criminalidade. Disse ela, ao vivo e enfática, ao comentar o caso do adolescente-problema acorrentado a um poste por motoqueiros-problema: é a “legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado”.

Por conta disso, várias discussões estão ocorrendo, em geral entre pessoas muito irritadas. Uma dúvida pré-jurídica é se, como pensa Sheherazade, justiceiros autoinvestidos ajudam mesmo a segurança pública. Não é meu tema aqui, mas é inevitável lembrar que a humanidade tem experiência milenar com essa violência de justiceiros e que os estados a foram eliminando na medida em que se desenvolviam. Quem, em meio a acessos de medo ou raiva, quer recorrer a justiceiros, devia pesquisar mais para saber como um sistema assim funciona na prática.

Outra dúvida, agora ligada ao direito, é a de saber se Sheherazade violou alguma lei. Todos nós temos o direito, garantido na Constituição, de defender publicamente nossas opiniões. Mas a liberdade de expressão é limitada por algumas leis, como as que punem o racismo (ainda que apenas verbal), as ofensas pessoais (calúnia, injúria, difamação) e a apologia do crime. São casos de abusos puníveis da liberdade de expressão.

O “controle democrático”

Será que Sheherazade abusou? Também não é meu tema. Por isso, limito-me a lembrar que, como nenhuma lei consegue, em matéria de liberdade de expressão, ser muito objetiva ao distinguir o exercício lícito do abuso, os Tribunais Constitucionais mundo afora tendem a desidratar por via de interpretação as restrições que essas leis impõem sobre a liberdade. Baseados na experiência, os juízes constitucionais mostram ter muito mais medo de as restrições sufocarem as liberdades do que de os abusos causarem problemas duradouros.

Outro debate – este, sim, me interessa aqui – é para saber se, independentemente de Sheherazade ter ou não abusado, o SBT e as outras TVs estariam juridicamente obrigados a manter linhas editoriais mais afinadas com os valores da elite democrática moderna e culta. A propósito do caso Sheherazade, Lino Bocchini retomou, na CartaCapital, um argumento sempre repetido nessas situações: televisões são concessões públicas e não têm a mesma liberdade dos jornais e revistas impressos. A ideia implícita é que as televisões existiriam para cumprir uma missão pública e, por isso, as opiniões ou interesses de seus proprietários não poderiam moldar o conteúdo do que é transmitido. Em síntese: televisão tem de transmitir “conteúdo público”, não conteúdo determinado por vontades privadas.

Vou deixar de lado o problema de saber como se poderia organizar na prática um sistema de controle estrito do conteúdo das televisões sem que ele descambasse para a censura, a propaganda do estado ou das autoridades ou para o puro arbítrio dos controladores. Muita gente defende o “controle democrático” do conteúdo das televisões por apostar que suas próprias opiniões prevalecerão se um tal controle for adotado. É uma aposta no mínimo arriscada. De qualquer modo, o debate é extrajurídico, pois esse tipo de controle não está previsto pelas normas no Brasil.

Livre para apertar o off

Os críticos da plena liberdade dos donos das televisões lembram, com razão, que o artigo 221 da Constituição estabeleceu alguns princípios para orientar a programação. Os mais relevantes aqui são o princípio da “preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas” e o princípio do “respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”. Mas não me parece haver fundamento para dizer que o meio escolhido pelas normas brasileiras para favorecer a realização desses princípios seja mesmo uma restrição, sobre a liberdade de expressão dos donos das televisões, maior que a dos donos de jornais e revistas impressos.

Embora aqueles críticos digam a verdade quando argumentam que as TVs são concessões, distorcem as coisas por não dizerem que, pelo art. 223 da Constituição e legislação ordinária, essas concessões são diferentes e especiais. São concessões quase desreguladas, especialmente quanto ao conteúdo da programação. As normas brasileiras fizeram, gostemos ou não, a opção de privatizar o poder sobre a programação. Não é uma opção absurda; é uma opção.

O modo previsto por nosso direito para equilibrar as eventuais distorções desse modelo desregulado (um problema é o monopólio de certo tipo de opinião) é a multiplicação de concessões e a existência de TVs públicas. Há hoje no Brasil concessões controladas pela igreja católica, por templos evangélicos, por famílias diferentes, até por movimentos sindicais. Além disso, há as TVs públicas, como a Cultura de São Paulo.

Também importante: há muitos outros meios de comunicação difundindo e discutindo ideias. E quem não gosta do que se vê nas TVs é livre para apertar o off. É a minha opção.

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Carlos Ari Sundfeld é professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas, autor de Direito Administrativo para Céticos