Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Imprensa desumanizada

Os casos das mortes de Santiago Andrade e de Cláudia da Silva Ferreira fomentaram dois interessantes exemplos recentes de análise do discurso no impacto do fazer jornalismo. A discussão fica mais profunda avaliando uma série de termos que compuseram as manchetes sobre a morte de Cláudia Ferreira.

“Mulher arrastada”, “mulher”, “enterro de arrastada”, “viúvo de mulher morta”, “filha de arrastada” e “arrastada” são termos usados frequentemente para classificar Cláudia da Silva Ferreira, de 38 anos, auxiliar de serviços gerais. A adjetivação desumanizou o ser humano que perdeu uma vida com identidade, vítima de mais um comportamento desengonçado da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Não importa aqui se ela havia falecido com o tiro. Arrastar um corpo por 250 metros é comportamento de pessoas desprovidas do mínimo de compaixão e sensatez. Editores e repórteres se esquecem de, no calor do imediatismo de publicar a informação, qualificar Cláudia Ferreira nas manchetes. A vítima com aqueles termos é tratada de forma fria, pejorativa e coisificada.

O mesmo raciocínio é interpretado na morte de Santiago Andrade, em fevereiro último. A expressão “cinegrafista da Band” banhou as manchetes na televisão, nos jornais e nos portais noticiosos na internet. Ele, assim como Cláudia da Silva Ferreira, na frieza que as técnicas jornalistas impõem aos profissionais como se eles fossem proibidos de sentirem emoção, virou notícia nas páginas dos jornais de maneira pulverizada.

A redução em identificá-los como “mulher arrastada” e “cinegrafista da Band” causa o incômodo no público em sentir a necessidade de ler a matéria ou clicar na página. O jornalismo não deixa de ser um comércio. A imprensa depende de capital para existir. O leitor de um jornal é um investidor daquele conteúdo. Mas o jornalismo tem a responsabilidade de apresentar os dois acontecimentos citados neste texto, assim como os similares que venham a acontecer, com tratamento respeitoso. Tanto para leitor quanto para a família. Ambos têm nomes, profissão, família e morreram trabalhando. Ambos são seres humanos e devem ser olhados como tal.

Cláudia da Silva Ferreira e Santiago Andrade saíram no jornal, mas, como diz Chico Buarque, suas dores foram esquecidas.

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Marcos Araújo é jornalista, Valinhos, SP