Estarrecedor, nefando, inominável, infame. Gasto logo os adjetivos porque eles fracassam em dizer o sentimento que os fatos impõem. Uma trabalhadora brasileira, descendente de escravos, como tantos, que cuida de quatro filhos e quatro sobrinhos, que parte para o trabalho às quatro e meia das manhãs de todas as semanas, que administra com o marido um ganho de mil e seiscentos reais, que paga pontualmente seus carnês, como milhões de trabalhadores brasileiros, é baleada em circunstâncias não esclarecidas no Morro da Congonha e, levada como carga no porta-malas de um carro policial a pretexto de ser atendida, é arrastada à morte, a céu aberto, pelo asfalto do Rio. Não vou me deter nas versões apresentadas pelos advogados dos policiais. Todas as vozes terão que ser ouvidas, e com muita atenção à voz daqueles que nunca são ouvidos. Mas, antes das versões, o fato é que esse porta-malas, ao se abrir fora do script, escancarou um real que está acostumado a existir na sombra.
O marido de Cláudia Silva Ferreira disse que, se o porta-malas não se abrisse como abriu (por obra do acaso, dos deuses, do diabo), esse seria apenas “mais um caso”. Ele está dizendo: seria uma morte anônima, aplainada pela surdez da praxe, pela invisibilidade, uma morte não questionada, como tantas outras. Noto que a família foi econômica em adjetivos, soube tratar acontecimentos tão terríveis e dolorosos como substantivos, e inspira uma dignidade que nos coloca, infelizmente através da tragédia, diante da força de alguma coisa que podemos chamar ainda, apesar de tudo que advoga em contrário, de povo brasileiro.
Situação-limite
Que a pessoa agonizante seja colocada num porta-malas, e que esse porta-malas, por ironia, por um lapso analítico, por incompetência cósmica, se abra com o carro em movimento, que ainda assim essa pessoa tombada fique presa por um fio de roupa, por um trapo que não se rompe pela força do atrito nem pela velocidade do veículo, que nesse lapso de tempo haja alguém que filma esse filme surreal exposto às nossas retinas fatigadas — toda essa cadeia de acasos produz um espetáculo sinistro que nos diz respeito pelo que tem de não familiar e de profundamente familiar. É uma imagem verdadeiramente surreal, não porque esteja fora da realidade, mas porque destampa, por um “acaso objetivo” (a expressão era usada pelos surrealistas), uma cena recalcada da consciência nacional, com tudo o que tem de violência naturalizada e corriqueira, tratamento degradante dado aos pobres, estupidez elevada ao cúmulo, ignorância bruta transformada em trapalhada transcendental, além de um índice grotesco de métodos de camuflagem e desaparição de pessoas. Pois assim como Amarildo é aquele que desapareceu das vistas, e não faz muito tempo, Claudia é aquela que subitamente salta à vista, e ambos soam, queira-se ou não, como o verso e o reverso do mesmo. O acaso da queda de Claudia dá a ver algo do que não pudemos ver no caso do desaparecimento de Amarildo. A sua passagem meteórica pela tela é um desfile do carnaval de horror que escondemos. Aquele carro é o carro alegórico de um Brasil, de um certo Brasil que temos que lutar para que não se transforme no carro alegórico do Brasil.
O deputado Iranildo Campos, do PSD, relator da proposta do novo código disciplinar para a PM e o Corpo de Bombeiros, afirma, comentando o ocorrido, que “presídio foi feito para bandido, não para policial”. Seria bom se a frase significasse que policial foi feito para ser policial, não para ser bandido. Mas ao desconhecer, ou ocultar, o fato de que esses polos opostos se cruzam numa zona de sombra, que é preciso identificar, esclarecer, erradicar, então a frase passa a significar que a lei é só para uns, e não para outros. Sendo que a lei é, por definição, a instância impessoal que se aplica a todos, a começar por aqueles que a efetuam como representantes do monopólio da violência pelo Estado, violência regulada pela lei. “Sou pobre, no particular. Mas eu quero é a lei…”, diz um personagem de Guimarães Rosa, em “Primeiras estórias”. É o que eu sinto na família de Claudia, firme e não movida pelo ódio. No Brasil, a aplicação da lei, por si só, já seria revolucionária.
A cena filmada no último domingo sinaliza uma espécie de situação-limite. É preciso refundir a instituição, é preciso desmilitarizar a polícia. Muitas são as forças capazes de contribuir para isso, de forçar o sistema político a sair dos seus mecanismos crônicos de autorreferência, e de lançar luz na confusão fusional brasileira.
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José Miguel Wisnik é colunista do Globo