Na madrugada do domingo (30/3), dia de futebol, de ir ao Maracanã ou de ficar com a família e os amigos, o complexo de favelas da Maré foi invadido pela Polícia Militar do Rio de Janeiro com apoio da Polícia Federal e Forças Armadas, com anuência e incentivo dos governos estadual (Sérgio Cabral, PMDB) e federal (Dilma Rousseff, PT).
A invasão, chamada eufemisticamente de “ocupação”, como se o local fosse desabitado ou não tivesse qualquer utilização para além de servir supostamente como ponto de tráfico de drogas, tem como objetivo a instalação de uma UPP na região, um modelo de segurança fracassado e que visa a esconder a incapacidade do Estado no trato com a população mais pobre da cidade. Incapacidade ou, na verdade, desinteresse.
Foi numa UPP, a da Rocinha, que Amarildo foi torturado, morto e teve o corpo “desaparecido” em 2013, e é nas UPPs que centenas de outros cidadãos, pais de família, filhos de mães chorosas, são torturados e mortos cotidianamente por uma polícia despreparada e por um Estado que mantém uma lógica militarista digna da ditadura militar – não à toa, o ponto alto das “ocupações” é o hasteamento da bandeira nacional. Em tempo: “despreparada” não é exatamente o termo a ser empregado, pois a polícia é preparada, sim, preparada para aterrorizar a periferia.
Pelas lentes da Globo, a invasão era filmada, divulgada para o mundo. Um grande sucesso, com crianças sendo colocadas nos cavalos de soldados da PM, os mesmos que em alguns dias estarão possivelmente lhes dando tapas na cara e lhes ensinando seu lugar. Dias ou minutos, ao menos até que as câmeras sejam desligadas e o espetáculo midiático tenha fim e a classe média se sinta mais segura, sabendo que a favela agora tem uma força de segurança (que garante a segurança do asfalto, não da favela em si, que fique claro).
“O Estado chegou”
Crianças são fotografadas dentro de blindados, caveirões, tanques de guerra urbanos usados contra a própria população. E logo começam as revistas das casas. De todas as casas, através de mandado coletivo ao arrepio da legalidade. O modelo de violência e segregação apenas se perpetua. Na frente das câmeras, sorrisos, pequenas apreensões de drogas (como se 100 gramas de cocaína aqui e ali ou um pouco de maconha fossem solucionar o “problema do tráfico”), apertos de mão com moradores solícitos e sorridentes (muitos escondendo o pavor e o desespero por detrás dos sorrisos armados para as câmeras, misturado também com o alívio pela presença das mesmas, lhes garantindo momentaneamente a segurança), um verdadeiro show midiático.
Terminado o show, câmeras desligadas, jornalistas sentindo o dever cumprido, começa a real invasão. Portas arrombadas, tapas na cara, armas na cara, grito, violência, choro, dor… E, por que não, mortes. “Traficantes”, “bandidos”, “meliantes”. “Quem não resistiu está vivo”, diria o governador de um estado vizinho simpático aos métodos violentos no trato à população. Cenários armados, armas plantadas, tortura, execuções. Lembremo-nos de Cláudia Silva Ferreira, assassinada pela polícia com dois tiros, que teve armas plantadas à sua volta e depois foi arrastada pelo asfalto após cair (sic) do porta-malas de uma viatura que a levava supostamente para o hospital (uma vala comum seria uma opção tão aceitável quanto essa, dada a situação e o histórico das nossas polícias).
A presença do Estado nas favelas se resume às forças de “segurança”. Milhões são gastos na instalação e manutenção do aparato repressivo, nenhum centavo é gasto em escolas, hospitais, centros comunitários e de atenção às estas populações. Ocupa-se favelas com a força, como se fossem o inimigo. E a mídia louva o sucesso da operação, anunciando feliz que “o Estado chegou”.
O paraíso da paz sem voz
Não trouxe educação, não trouxe saúde, nem qualidade de vida e muito menos dignidade e cidadania.
Alguém imagina um mandado coletivo ou blindados nas ruas do Leblon? Ora, se há tráfico nas favelas, quem consome seus produtos? Quem financia suas ações? Quem são os verdadeiros chefes? Estes não estão na Maré, na Rocinha ou no Santo Cristo. Estes não são incomodados, não tem câmeras em suas caras com falsos sorrisos, com o medo estampado e indisfarçável em seus olhos.
Os “bandidos” irão para a Baixada, para outras favelas, se esconderão até a poeira baixar, depois voltarão a suprir a classe média de seus produtos básicos. Da cocaína da festinha da turma da TV, da maconha da playboyzada daquela universidade particular caríssima da Zona Sul… Não, o problema não são as drogas, é a proibição, a ilegalidade. O tráfico é filho da proibição, a violência é resultado da proibição.
Mas a droga precisa fluir. E fluirá. A violência do Estado é apenas um ingrediente midiático,
O Rio é o paraíso da paz sem voz e, dizia o poeta, “paz sem voz não é paz. É medo”.
Medo televisionado, fotografado… No fim, ignorado.
******
Raphael Tsavkko Garcia é mestre em Comunicação e doutorando em Direitos Humanos