Segundo o filósofo francês Michel Foucault, o discurso não é o que traduz as lutas, mas é o próprio motivo pelo qual se luta (1969, p.2). Se lesse as manchetes dos grandes jornais nacionais durante a última semana, possivelmente Foucault encontraria motivos que reforçassem sua teoria exposta na obra A ordem do discurso. Um rápido passar de olhos pelos jornais de domingo (30/3) do Rio de Janeiro, mais especificamente O Dia e O Globo, deixa transparecer uma disputa simbólica na ocupação do complexo de favelas da Maré, cujo processo iniciou-se na semana passada e culminou na presença ostensiva das forças armadas no local, em uma efeméride que já gerou 113 prisões e um sem numero de invasões, denúncias de tortura e as já costumeiras arbitrariedades recorrentes na política estadual, pintada e travestida de retomada de territórios.
Numa infeliz coincidência, na segunda-feira, dia 31/3 (oficialmente, já que a data verdadeira de 1º de abril soaria contraproducente ao regime militar), comemoram-se (ou se descomemoram, como querem movimentos sociais e partidos de esquerda) os 50 anos do golpe militar que trouxe uma noite quase definitiva ao país do futebol e, infelizmente, das grandes corporações de mídia. Por todos os lados eventos relembram a inesquecível data, seja através de debates, filmes e passeatas, muitos deles, felizmente, para marcar a ferro e fogo, nos que ainda não sabem, a página infeliz da história brasileira. Um deles foi o evento “Domingo é dia de cinema”, ocorrido no cinema Odeon BR às 9h,com a exibição do documentário Anos de Chumbo, do jornalista e cineasta Lucio de Castro e seguido de debate com o historiador Luiz Antonio Simas e a professora Paula Mairan. Em dado momento, Simas fala sobre suas memórias dos tempos da ditadura e alerta para a necessidade de responsabilização não só do Estado e das forças armadas ou mesmo da mídia, mas também é sobretudo da sociedade civil.
Mídia não reflete a opinião pública
Corroborando o pensamento de Luiz Antonio, o jornal O Dia, em extensa matéria de domingo (30/3), justifica a seu modo o amplo apoio dado pelos órgãos de imprensa ao golpe militar, reforçando que, no endurecimento do regime, muitos dos antigos apoiadores dos militares na imprensa passaram para o lado da oposição, sofrendo dura repressão, diga-se de passagem, com o “empastelamento” de redações, a prisão e morte de jornalistas e, claro, a censura das reportagens. Sobressai, à parte as justificativas, uma pergunta que insiste em não ser respondida: de que modo construíram as mídias e os órgãos de propaganda da repressão de modo a tornar tão coesa a opinião pública sobre o golpe militar? Uma resposta possível: não era coesa. Em matéria no jornal O Dia, uma pesquisa denota que mais de 82% dos entrevistados no estado do Rio de Janeiro apoiavam as reformas de base do presidente João Goulart (ver aqui), ao contrário do que apregoavam os ‘jornalões’ da época. Então, se o apoio era quase unânime, por que não houve resistência aos militares, uma revolução sem precedentes, a tomada de armas em defesa do Estado de direito? Solução do enigma toma as mentes privilegiadas de nossas cabeças pensantes há meio século, sem que em definitivo sejam encontradas respostas que satisfaçam inteiramente a questão. Entretanto, uma possível hipótese, ainda que incipiente para caber em apenas um artigo, sugere um possível caminho, que passa por Antonio Gramsci para pensar o conceito de hegemonia. Dessa forma, nos Cadernos do Cárcere, o pensador italiano definira a hegemonia como a fase em que “um grupo social obtém o consenso de outros grupos para suas propostas” (COUTINHO, 2011, p.162).
Ora, se a ditadura não era um consenso, como bem o sabemos, era preciso construir um discurso que legitimasse suas ações, de modo a influenciar a opinião pública e controlar as reações contrárias. Em paralelo, através de medidas espúrias que visavam ao aparente bem-estar de uma parte significativa da população, garantia-se o silêncio necessário para que todo o aparato do terrorismo de Estado continuasse funcionando. Não é por acaso que jornalistas, intelectuais, artistas e demais pessoas públicas foram perseguidos e torturados. Sendo possíveis formadores de opinião, era preciso que não se calassem, mas que compreendessem e apoiassem as ações de Estado, em prol da construção de um consenso, visando à hegemonia do governo ditatorial. O resultado, bem sabemos, foi desastroso e a roda viva do regime militar seguiu firme por longos 21 anos encarcerando e calando todas as vozes possíveis de se seguirem contra as violações cometidas contra o Estado de direito em um episódio que só pode ser superado no momento em que for compreendido e debatido em sua totalidade.
Estamos longe disso. Ao contrário, a ocupação das favelas da Maré pelo braço armado do Estado, através de violações de direitos básicos, invasões de domicílios, prisões e tortura só reforça o fato de que o Estado de direito ainda está longe de ser uma realidade para grande parcela da população, que assiste em pânico a tomada de suas ruas em duas grandes frentes, sob o comando do governo fluminense e sob o beneplácito do governo federal: de um lado, as tropas armadas. De outro, os flashes da “grande imprensa brasileira”, unida para fornecer à sociedade civil seu quinhão de segurança necessário para que possa continuar subsistindo. Sobrarão, nos próximos dias, imagens de crianças a bordo de tanques, serviços de estado que chegam à Maré e empresas que promoverão uma nova ocupação, essa de direito, em contraponto aos traficantes de drogas e à desordem. Arrisco dizer que a mídia não reflete a opinião pública hoje, da mesma forma que não refletia em 1964.
Convém desconfiar
Há muitos que se revoltarão contra a violência que vem a bordo da mensagem de pacificação. Não serão, entretanto, parte do consenso dos grandes veículos de comunicação de que somente um “cinturão de segurança” conseguirá erradicar o mal do estado do Rio, território estratégico para a União. Se antes os inimigos públicos eram os comunistas, em tempos de capitalismo globalizado quais seriam os algozes da ordem e do progresso, aqueles que não podem consumir? Sobrará uma mísera nota de pé de página para questionar de onde vêm as armas e drogas que abastecem as favelas cariocas e por que um estado pode afirmar que é impossível controlar as fronteiras para a entrada de armamento e drogas, mas pode, a golpes de caneta, fornecer todo o midiático aparato das forças armadas para garantir o sono dos cidadãos de bem? As vozes dissonantes não serão, mais uma vez ouvidas. Sobrarão em mídia impressa e televisiva exemplos de aproximação entre policiais e população, o que parece não ser possível antes da ocupação, que encherão os imaginários dos espectadores de esperança. Agora, sim, teremos paz, pensarão talvez. Da mesma forma que há cinquenta anos, a verdadeira revolução, das que faz jorrar sangue e castiga os corpos dos que se encontram no meio do caminho, não será exibida no jornal da noite, porque não dará conta de explicar por que motivos a pacificação precisa ocorrer somente nos territórios das favelas e não em órgãos de Estado, de corrupção endêmica, nas fronteiras abertas do Estado, por onde entra a logística que abastece as partes interessadas de armas e drogas e principalmente, nas mentes da sociedade civil, que precisaria de mais cinquenta anos para compreender sua parcela de responsabilidade na violência de Estado da qual também é vitima.
Resta-nos a esperança de que as vozes da arte e da reflexão mais uma vez façam-se ouvir, mas que não partam de seus lugares confortáveis para denunciar as violações dos direitos humanos, as mortes e a manutenção de um estado de exceção que se perpetua na crença de que é o braço armado do governo o principal responsável pela segurança da sociedade, propondo o discurso contra hegemônico e o beneficio da dúvida, em contraposição à hegemonia dos grandes veículos de imprensa. Em se tratando de operação militar feita com ampla cobertura midiática, dados os antecedentes históricos do país, convém sempre desconfiar.
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Tatiane Mendes é jornalista, Rio de Janeiro, RJ