Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Machismo midiático de cada dia

Não é novidade que, em pleno século 21, simultaneamente às lutas de movimentos sociais pelo fim de mazelas sociais como racismo, sexismo, homofobia e tantas outras, ainda existem práticas que estimulam o preconceito, a subjugação e a inferioridade de grupos considerados minoritários ou historicamente oprimidos. Chama especial atenção o quanto essas práticas discriminatórias vêm sendo veiculadas na mídia, sobretudo em propagandas e peças publicitárias.

Em 2014, no mês “dedicado” à mulher – referente ao emblemático dia 8 de março –, as mulheres, em vez de homenageadas, foram constantemente agredidas na mídia, objetificadas em âmbito econômico e sexual, inferiorizadas em relação ao sexo masculino. Isso sem mencionar os dados vergonhosos do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) sobre como o machismo tem sido dominante em nossa sociedade: 65% dos brasileiros acredita que roupas curtas justificam o estupro de mulheres. Esse machismo, travestido de tradições, de insegurança, de rótulos e tabus, é diariamente reforçado por conversas de bar, por discursos em palanques eleitorais e igrejas, pela educação “diferenciada” dada às meninas, e também pela mídia em discursos publicitários e jornalísticos. Citaremos a seguir dois casos: uma peça publicitária veiculada por uma das maiores redes de lojas de departamentos do Nordeste (Armazém Paraíba) e uma propaganda do Metrô de São Paulo veiculada no rádio.

“É bom pra xavecar a mulherada”

A peça do Armazém Paraíba, veiculada em 24 de março de 2014, traz o seguinte enunciado em sua página oficial na rede social Facebook: “10 passos para conquistar uma mulher: 1) Libere o cartão Paraíba e ela esquecerá de todos os outros” (ver aqui). Houve uma enxurrada de compartilhamentos e respostas de consumidores, em sua maioria revoltados, falando do estereótipo da mulher na propaganda, dos discursos ultrapassados ali inseridos e da falta de respeito com as clientes da empresa. A resposta da empresa às críticas foi: “nossa empresa faz parte de um grupo com mais de 4.000 colaboradoras. Valorizamos a mulher e principalmente nossas clientes”.

Entendemos que valorizar a mulher, para a empresa citada, significa atribuir à mulher o valor de um cartão, como se todas as mulheres fossem interesseiras e dependentes de homens que “teriam que liberar um cartão para que elas fizessem compras”. Não coincidentemente, a peça foi feita por um homem que, em sua página pessoal do Facebook, discorreu sobre a polêmica da publicidade comparando a mulher – que obviamente é seduzida por um cartão – a um “cachorro que abana o rabo ao receber um osso” e que isso não seria machista. Várias mulheres do Grupo Paraíba se manifestaram defendendo a publicidade e tentando explicá-la como “uma brincadeira”. Uma sucessão terrível de erros. A empresa não se pronunciou novamente sobre o assunto, nem retirou a peça de sua página na rede social.

No dia seguinte (25/03), a Rádio Transamérica veiculou uma propaganda do Metrô do estado de São Paulo que fazia clara referência ao assédio de mulheres nos trens, só que estimulando essa prática (link: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/03/1430676-vagao-lotado-e-bom-para-xavecar-mulherada-diz-propaganda-do-metro.shtml). Em meio a um contexto em que a onda de assédios a mulheres em trens brasileiros tem pautado discussões e, inclusive, punições aos agressores, a propaganda diz que a “vantagem” de estar em trens lotados é a de “xavecar mulheres”, fazendo apologia ao assédio. A propaganda não somente justifica que seja normal ter trens lotados em determinados horários, como o narrador – personagem da rádio denominado Gavião – diz que “Pra falar a verdade, eu até gosto do trem lotado. É bom pra xavecar a mulherada, né, mano. Foi assim que eu conheci a Giscreuza”. O Metrô de São Paulo divulgou que a propaganda foi inapropriada e que a empresa condena os assédios nos trens, acrescentando que a empresa contratou uma vinheta com espaço a improvisos na rádio.

Uma sociedade “justa e igualitária”?

Nos dois casos, o desrespeito à mulher é gritante, seja ela um objeto dependente e submisso ao homem, um ser consumista por natureza, ou um objeto sexual à disposição para qualquer tipo de assédio. Percebo que empresas de grande porte pouco estão ligando para questões comunicacionais. Pergunto-me como propagandas ou peças publicitárias como essas são aprovadas, como elas são liberadas para veiculação? Será que empresas como essas realmente acreditam que sua clientela feminina não merece respeito ou atenção; ou será que discursos machistas como os que citei anteriormente ainda circulam em nossa sociedade sem pudores, sem problemas, sem reflexão?!

Drumont explica que “o machismo é definido como um sistema de representações simbólicas, que mistifica as relações de exploração, de dominação, de sujeição entre o homem e a mulher… O machismo enquanto sistema ideológico, oferece modelos de identidade tanto para o elemento masculino, como para o elemento feminino. Ele é aceito por todos e mediado pela liderança masculina. Ou seja, é através deste modelo normalizante que homem e mulher ‘tornam-se’ homem e mulher, e é também através dele, que se ocultam partes essenciais das relações entre os sexos, invalidando-se todos os outros modos de interpretação das situações, bem como todas as práticas que não correspondem aos padrões de relação nele contidos”(1980, p.81).

Ainda vemos hoje, em matérias, notícias e reportagens, um estranhamento do lugar da mulher bem sucedida, da mulher executiva – embora tenhamos uma mulher na presidência de nosso país. A mulher ainda é mais vista como objeto de atração masculino do que como ser pensante que tem um papel social muito mais complexo que o de “esposa” e “dona de casa”. O machismo midiático – seja em propagandas de cerveja, em estereótipos da mulher contemporânea e da mulher brasileira etc. – circula ainda livremente, sem muitas ressalvas e agride diariamente muitas cidadãs.

É essa a comunicação que queremos? São essas as mensagens que deveriam circular em uma sociedade que se diz “mais justa e igualitária”? São essas mensagens, esses discursos, esses posicionamentos que sedimentam ainda mais a imagem inferior da mulher em nossa sociedade. São esses pequenos fatos cotidianos que alimentam os discursos de ódio aos movimentos sociais em defesa das mulheres, que alicerçam uma sociedade em que a agressão à mulher ainda é tão frequente, e que muitas vezes passa despercebida ou é negligenciada.

Referência

DRUMONT, Mary Pimentel. “Elementos para uma análise do machismo”. In: Perspectivas, São Paulo,1980.

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Tamires Coêlho é doutoranda e mestre em Comunicação