Quem assistiu pela Globo News à ocupação militar do Complexo da Maré foi recompensado por um programa televisivo repleto de emoção, senso de espetáculo, virtuosismo narrativo, patriotismo – tudo, menos bom jornalismo.
O tom predominante desde as edições horárias do fim de semana tem sido de desabrido ufanismo, no melhor estilo support our troops: uma narrativa de exaltação da ação bélica em prol de uma suposta redenção de populações por décadas relegadas ao jugo de criminosos e traficantes, as quais o Estado vem, enfim, resgatar. A reprodução acrítica das versões governamentais, a fé cega nas fontes oficiais e o perfil chapa-branca da grande maioria dos entrevistados agravam a sensação de que estamos diante do jornalismo como porta-voz do Estado. Qualquer semelhança com o comportamento da mídia norte-americana na invasão do Iraque sob o comando de Bush não é mera coincidência.
Operação polêmica
Assim, o grau de engajamento editorial dos telejornais da emissora tem incluído não apenas um indisfarçado e acrítico aval à invasão ao complexo da Maré – um conjunto de 16 favelas onde moram cerca de 130.000 pessoas – mas, o que é mais grave, um baixíssimo interesse em perscrutar os muitos aspectos questionáveis de uma empreitada que é, significativamente, a maior operação militar em território nacional no período democrático, com inédita colaboração entre PM (Bope), PF e Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica).
Trata-se, ainda, de um empreendimento que tem suscitado a preocupação de juristas e democratas em geral, devido, entre outras coisas, à utilização de mandados de busca coletivos e genéricos que, ao ignorarem a necessidade de se especificar individualmente a alegada conduta criminosa, acabam por tratar como suspeitos todos os moradores residentes em tais áreas, agravando a confusão entre pobreza e criminalidade e promovendo a violação coletiva de direitos individuais pela Constituição assegurados.
Porém, os telejornais da Globo News aligeiram tais escrúpulos, minimizando essas questões e fingindo ainda ignorar que as experiências pregressas das UPPs – que incluem, entre outros episódios lúgubres, a tortura e morte do pedreiro Amarildo dos Santos e o assassinato de Claudia Ferreira, cujo corpo foi arrastado por carro da PM –, não permitem mais considerar que levar a PM às comunidades seja uma panaceia, e muito menos que equivalha a levar o Estado às comunidades.
Pouca curiosidade
A questão da violência no Brasil, complexa por si, atinge o paroxismo no que se refere ao Rio de Janeiro, ainda mais às vésperas de dois dos mais importantes eventos esportivos mundiais. Ninguém está dizendo que há soluções fáceis ou que, não obstante seus graves problemas, as UPPs devam ser, neste momento, integralmente e sem delongas descartadas. Mas é exatamente devido a tais incertezas e à complexidade do tema em questão que a mídia deveria adotar uma visão mais distanciada, crítica e plural, ao invés de, numa postura incompatível com o bom jornalismo, aderir entusiasticamente a um projeto de segurança polêmico e permeado de acusações de monta e de revezes consumados.
Tal postura se evidencia, nos telejornais da Globo News até quando o/a âncora inquire os “experts” selecionados a dedo para as entrevistas. Um dentre tantos exemplos possíveis: quando o suposto especialista afirma que o uso de óculos com câmera por cada um dos policiais do Bope trará “mais transparência” à ação, a entrevistadora limita-se a corroborar tal asserção, ao invés de questionar como funcionam tais gravações, quem garante que toda a operação será filmada e as gravações disponibilizadas na íntegra, quem tem acesso a elas, se são ou não passíveis de edição antes de sua divulgação ao público – enfim, todas as questões que não só a deontologia, mas a própria curiosidade natural jornalística deveria suscitar.
O dono da voz
Essa recusa em cumprir o preceito básico do bom jornalismo que é ouvir “o outro lado” torna-se ainda mais evidente – e mais nociva – quando se leva em conta o espaço pra lá de generoso que é concedido aos discursos oficiais. Por exemplo, em algumas das edições da tarde do domingo (30/3), o governador Sérgio Cabral Filho (PMDB-RJ) ocupou a telinha por quase quatro minutos – uma eternidade em se tratando de tempo telejornalístico. Seu discurso, pleno de ufanismo, ainda procura vender a ideia, poucas semanas após os casos Amarildo e Cláudia. de que as UPPs significam o fim da guerra e a instauração da paz nos morros cariocas.
Finda a tão grande quanto questionável peroração do governador, a emissora não oferece sequer um arremedo de contraposição a tais ideias, que ao menos permita pô-las em perspectiva. Ao contrário: ao dar continuidade, após a entrevista, a uma abordagem de desabrido ufanismo, o efeito é de validação e corroboração integral das palavras de um governante e político que fala a partir de uma determinada posição de poder e tendo em vista um certo objetivo eleitoral – com os quais, em última análise, o jornalismo da emissora dá mostras de comungar.
Sob a sombra de 1964
Que a maior manobra militar da era democrática e o evento de mais deliberada criminalização da pobreza se dê exatamente 50 anos após o golpe militar, e com o aval de uma presidente e comandante em chefe de origem esquerdista, a cargo de um governo dito progressista, é um fato que transcende a coincidência histórica e impõe-se como altamente simbólico, fazendo soar alertas.
A Rede Globo levou décadas para se redimir publicamente pelo apoio dado ao golpe militar de 1964. O pedido de desculpas não se estendeu a outros momentos de aguda importância histórica – como a campanha pelas Diretas-Já – em que a conduta da emissora muito deixou a desejar em termos jornalísticos, no mais das vezes preterido em nome da prioridade aos interesses do grande capital em detrimento do bem público.
Ainda assim, a emissora mostrou-se capaz, recentemente, de produzir documentários de alta qualidade jornalística sobre o período militar – com destaque para um especial de meia hora sobre o caso Riocentro. Seus telejornais, no entanto, continuam longe de tal padrão e eivados de antigos vícios, como o gosto pelas narrativas maniqueístas, a identificação com uma facção do poder político, o desejo evidente de intervir não como órgão de mídia, mas como ator político – característica ainda mais visível no que concerne à política fluminense.
Desculpas futuras?
É a partir desse distanciamento da deontologia jornalística em prol de uma atuação marcadamente parcial em termos políticos e ideológicos que se avoluma a desconfiança contra o jornalismo da Globo – a ponto de terem se tornado corriqueiras as agressões a profissionais e veículos da emissora em protestos populares – e que se evidenciam as discrepâncias entre realidade e versão que a levam, ainda que décadas depois, a vir a público se redimir. A cobertura da ocupação da Maré não só repete tais problemas, mas os intensifica.
Finda a invasão do Iraque, alguns veículos da mídia dos Estados Unidos vieram a público fazer o mea culpa. Mas o sangue de invasores e invadidos já fora derramado, o país loteado e atolado em violência. Quando se fizerem sentir os efeitos do jornalismo unilateral e tendencioso com que a Globo trata a ocupação da Maré, engajando-se não com os fatos, e sim com um determinado projeto político que tem nas UPPs seu símbolo máximo, teremos, e a que custo, um novo pedido de desculpas?
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Mauricio Caleiro é jornalista e doutor em Comunicação pela UFF; seu blog