O Brasil foi acusado na audiência, em Washington, da Comissão Interamericana de Direitos Civis (CIDH) de usar métodos não-democráticos para conter as manifestações populares ocorridas a partir de junho de 2013. O governo diz que é drama, informou o Globo (28/3, pág.8). As denúncias que as organizações fizeram sobre o país estar no caminho de tornar-se um regime de exceção foram argumentações corretas seguidas por uma conclusão precipitada: o governo ainda tem muito a explicar sobre sua ação e omissão nos protestos, mas isso não o torna um regime de exceção.
As acusações, feitas por ONGs como a Artigo 19 e a Conectas (7/3), são verdadeiras e não poupam nenhum poder, em nenhum nível do Estado. Os executivos estaduais falharam na aplicação da lei, o judiciário violou direitos humanos e ainda tentou criminalizar as manifestações. O legislativo, segundo as declarações das ONGs publicadas no Globo, “apresentou 15 projetos de criminalização de manifestantes” e “tentou tipificar terrorismo” levando em conta apenas interesses políticos e mercantis.
Todas as acusações são corretas e cabíveis. Mas a afirmação da advogada da organização Artigo 19, Camila Marques, é uma hipérbole: “As milhares de prisões nos protestos mostram claramente que, sim, é um estado de exceção, que cerceia a liberdade de expressão e não assegura a democracia. Há proposta no Congresso estabelecendo pena inicial para crime contra o patrimônio em protestos 20 vezes superior à de homicídio. Isso é exceção”, afirmou a advogada ao Globo.
O excesso de rigor do projeto sinaliza apenas a incapacidade da maioria dos nossos políticos em lidar com manifestações populares no mundo do século 21, e não a existência de um estado de exceção. O discurso de Camila Marques foi enfático, eloquente, justo, inteligente. E equivocado: não vivemos em um estado totalitário, e a existência de propostas desvairadas de leis irracionais não sinaliza a existência de um estado de exceção. Afirmar sua existência é um exagero perigoso.
Argumentos incontestáveis
O Itamaraty rebateu as acusações, mas sua atuação tem limites graças à crise com a CIDH, que queria a paralisação das obras da usina hidrelétrica de Belmonte, sob pena da expulsão do Brasil da OEA, em 2011. O governo não gostou do ultimato, chamou de volta seu embaixador naquele órgão, não designou outro representante para o cargo e nem enviou o embaixador de volta, informou o Observatório Sócio-Ambiental de Barragens do IPPUR naquele ano (23/10). A Folha de S.Paulo (27/3) atualizou a informação. Nada mudou de modo significativo no cenário do litígio entre a OEA e o Brasil até o momento.
Aqui no Brasil temos uma democracia embrionária, falha e corrupta. E realmente há um regime que mantém, sem a menor vergonha, sessões especiais de justiça para alguns poucos privilegiados. O direito a foro especial não é compatível com nenhum tipo de regime democrático, salvo raros casos específicos e pouco usuais. Sua existência é uma ameaça ao estado de direito.
A democracia é uma construção diária. E a nossa ainda é frágil. Por isso temos que ter cuidado com discursos absolutos que reduzem quem discorda deles ao silêncio. A nossa política de diretos humanos está longe do ideal mínimo de uma democracia. O Brasil foi pego de surpresa pelas manifestações do ano passado, foi mal na política externa como um todo, e acabou com uma copa do mundo complicada pela frente.
As ONGs acertaram em suas petições contra o Brasil. Seus argumentos são incontestáveis. O problema é a apropriação de seus discursos por quem realmente vê o Brasil como um país que já vive um estado de exceção. Elas podem ser instrumentais para agentes oportunistas incendiarem ainda mais o cenário político nacional em um ano eleitoral muito complicado.
Cenários apocalípticos
Não há estado de exceção no Brasil. Mas também não temos uma democracia justa e madura. Há muito a ser feito. Do ponto de vista da justiça, tudo deve começar com o fortalecimento dos juízos de primeira instância. Não há domínio real da lei nem democracia enquanto houver desconfiança sobre tudo o que é julgado nas instâncias inferiores. E enquanto persistir a exposição aos caprichos e abusos dos poderes legais e ilegais em casos de primeira entrada. Como as vendas de sentenças. Os defensores do foro especial de justiça apoiam-se na fragilidade dos judiciários estaduais para manterem eternamente seus tribunais especiais.
Outros acreditam que só a justiça federal é eficiente. O que querem então? Uma lei única e que não respeita a autonomia dos estados? Subordinação jurídica total a um regime jurídico centralizado? Uma única instância não pode julgar tudo. Nem tudo tem que acabar no Supremo. Isso é caminhar na direção de um estado autoritário (e da ineficiência). Inexperiência diante de protestos nunca antes vistos na história recente do país não pode ser confundida com a vida em um estado totalitário. Temos um cotidiano aqui. Um dia a dia civil nas ruas. Eu lembro do tempo da ditadura. Havia também um cotidiano naqueles dias. Mas ele era bem diferente do que temos hoje em dia.
A realidade é que há muita gente insatisfeita graças à baixa capacidade de criticar e verificar o que a imprensa publica. Aceitam sem reflexão em tudo o que a mídia transmite ou imprime. Leitores e internautas incautos em nossa era digital muitas vezes não percebem que ela cria um fundo de insegurança que pode sugerir cenários apocalípticos que na realidade não estão acontecendo.
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Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor