Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Verba para financiar a indignação

Era para ser apenas mais uma das histórias que Nathalia Ziemkiewicz, de 27 anos, ouviria e contaria ao longo de sua carreira como jornalista. Mas aquela marcou. Ela acabava de conhecer Heberson Lima de Oliveira, um jovem pardo, pobre, ex-ajudante de pedreiro, que havia passado quase três anos preso, sem julgamento, por um crime do qual acabou inocentado. A história persistiu com ela e, um ano depois do encontro, a repórter trabalha com o diretor de teatro Fábio Ock para produzir um documentário sobre a história do rapaz. Eles procuram agora uma forma de financiar o projeto.

Em 8 de setembro de 2003, Heberson foi detido preventivamente sob a suspeita de ter estuprado uma vizinha de nove anos. O crime, segundo a polícia, ocorreu em uma madrugada em que o rapaz e um “indivíduo desconhecido” invadiram a casa de um vizinho, retiraram a menina do quarto em que ela dormia com os irmãos e a arrastaram para um quintal, onde ela foi estuprada. Com base nessa versão e na acusação de familiares da menina, com quem o jovem havia tido uma desavença, ele foi mandado para a Unidade Prisional do Puraquequara, um presídio superlotado na zona leste de Manaus (norte do país).

O rapaz, na época com 23 anos, conheceu então os horrores do sistema prisional brasileiro onde inúmeros presos provisórios aguardam julgamento; alguns deles, segundo a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, foram vítimas de tortura para confessar supostos crimes. Presídios onde a ausência de banho de sol é algo comum, assim como a carência de camas, colchões ou materiais de higiene pessoal.

E para Heberson a situação era ainda pior. Ele chegou na prisão com o carimbo de estuprador, considerado o pior “nível” de preso dentre os próprios presos. Com esse carimbo veio a punição implacável, imposta pela Justiça da cadeia. Ele foi violentado diversas vezes. E acabou sendo infectado com o HIV. O vírus somou-se à depressão e à fobia social na lista de problemas de saúde desenvolvidos por ele dentro do presídio.

Um projeto coletivo para financiar a indignação

Em 17 de maio de 2006, exatos dois anos, oito meses e nove dias de terror depois, o juiz Jorge Manoel Lins determinou que ele fosse libertado. Na sentença, afirmava que tanto a acusação quanto a defesa pediam que ele fosse inocentado por ausência de provas. Um laudo da perícia afirmava que a arcada dentária do acusado e as características físicas contrariavam o que fora informado pela vítima. Um testemunho desmontava a motivação do crime dada pela família. Herberson deixou o presídio, mas as consequências da injustiça permaneceram.

Nathalia contou o caso em uma reportagem para a revista IstoÉ em abril de 2013. A história fazia parte de um texto sobre um relatório de peritos do Conselho de Direitos Humanos da ONU que alertava sobre a preocupante situação carcerária do país. O documento apontava que o número de presos no país cresceu cinco vezes desde 1990, atingindo a marca de 550.000 detentos e cerca de 40% desse total era formado por presos provisórios, ou seja, sem julgamento, assim como o auxiliar de pedreiro.

Após entrevistá-lo por telefone, a jornalista se sensibilizou com a história e passou a tentar ajudá-lo. Enviou cestas básicas e remédios e assumiu como sua a missão de convencê-lo a tomar os coquetéis para o HIV. A essa altura, Heberson já havia desenvolvido Aids e não se tratava. Depois de uma tentativa frustrada de voltar ao mercado de trabalho e ter sofrido com o preconceito dos colegas, que evitavam beber no mesmo bebedouro que ele com medo do vírus, tinha ido morar nas ruas e consumia oxi, uma forma mais barata e agressiva de crack. Após o crime, sua mulher o abandonou e ele perdeu a guarda de seus dois filhos.

A jornalista o visitou e o convenceu a buscar uma indenização do Estado. Em setembro do ano passado, ele entrou com um pedido de indenização de 170.856 reais pelos danos morais e materiais causados pela prisão injusta. O Estado considerou o valor muito alto. “Quando ele soube, me disse: ‘Para de acreditar em mim.’ Fiquei arrasada por ter plantado a esperança nele”, conta a repórter.

A indignação dela transformou-se em um emotivo texto publicado em seu blog. Nele, ela contava a história do rapaz e pedia desculpas a ele. “Não consigo deixar de pensar que você foi estuprado de novo. Pelas canetas reluzentes de quem toma essas decisões descabidas. (…) O que mais nós podemos fazer por você, já que o Estado não faz?”, desabafou ela no texto, que viralizou no Facebook e foi lido por um milhão de pessoas.

O diretor de teatro Fábio Ock foi uma delas. Ele não conhecia Nathalia, mas trouxe a resposta: transformar a dura vida de Heberson em um documentário, para que mais pessoas pudessem ter acesso à história. Mas como financiar a indignação? Os dois criaram um projeto coletivo para arrecadar o dinheiro e colocar a ideia em prática. Conseguiram até o momento 10% da verba necessária a 23 dias do prazo.

Heberson, neste meio tempo, conseguiu um novo emprego. Mas teve que faltar três vezes por questões médicas e foi dispensado. Depende da ajuda de parentes e amigos, muitos deles recentes, “conquistados” em um grupo no Facebook que compartilha suas necessidades e tenta resolvê-las. Vive sozinho em um quarto de pensão e tenta se libertar de sua história.

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Talita Bedinelli, do El País