Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Estado de exceção permanente

O governador bem que se esforçou em dar credibilidade à alquebrada coreografia da pacificação. Com a fisionomia contrita, ele disse no domingo passado que a entrada da polícia no Complexo da Maré era “um dia histórico”. Oficiais contraíram a pança e hastearam o auriverde pendão em cima de barracos. Soldados com sorriso fotogênico posaram com crianças idem no colo. Meganhas empunharam metrancas com a cara de mau de canastrões de Alemão, o filme. Do cinema à reencenação da ocupação original, a empulhação se repetiu como farsa.

O mundinho oficial fingiu acreditar. Rápida no gatilho, uma artilharia de aspones da Secretaria municipal da Educação disparou propaganda no dia seguinte. O comunicado melhora se lido de peito estufado e ao som de uma salva de pontos de exclamação. Vem aí o Campus Educacional da Maré! Serão treze escolas novinhas! Sete creches com nome empombado (Espaço de Desenvolvimento Infantil) e sigla facinha, EDI! Oito colégios serão reformados. Dez mil crianças estudarão em turno único! A Prefeitura, sempre magnânima no amparo aos desvalidos, tem bala na agulha: R$ 325 milhões para torrar na nobre iniciativa!

Numa segunda leitura se percebe o contrabando que veio de cambulhada no tiroteio da Secretaria da Educação. A “previsão inicial” para começar a obra do tal Campus Educacional é para daqui a 90 dias – ou seja, em plena Copa. Ele será edificado num “terreno vizinho à Vila Olímpica”. Mas já agora, no próximo domingo, o exército entrará na Maré. As galhardas forças verde-oliva se aboletarão no Complexo também até a Copa. Aí o sentido da operação se aclara.

O seu objetivo não foi a Maré. Nem o Rio. Ou a galera de cariocas de carne e osso. A superprodução foi montada para turbinar a cidade-espetáculo dos megaeventos, o Rio da Copa e das Olimpíadas. O público-alvo é diminuto: as corporações que, aparelhadas na Fifa e no Comitê Olímpico Internacional, escolhem o território liberado pós-nacional em que será alocado o capital transnacional – a zona do agrião na qual uma marca de cerveja obtém o monopólio da venda nos estádios, apesar de a lei proibi-la expressamente.

Não foi por pirraça, pois, que os Napoleões da ocupação primeiro ergueram tapumes na Linha Vermelha. A pretexto de proteger a Maré do barulho dos carros, buscaram ocultar favelas das vistas de potentados do esporte desembarcados no Galeão. Nem foi à toa que UPPs tenham sido plantadas preferencialmente na Zona Sul, adjacentes a pontos turísticos, nas imediações do Maracanã e no caminho para a Barra, onde ficarão os atletas olímpicos.

Democracia é um embaraço

Também faz parte do script brandir o espectro das facções, bichos-papões sempre a pique de sabe-se lá o quê. Por certo que elas existem. Tanto que controlam presídios e chefiam milícias. Mas imputar poderes semidivinos a mulambos que calçam sandália de dedo visa justificar barbaridades, além de servir de desculpa para agir sem a devida consulta popular. As facções gerenciam as vendas no varejo da indústria das drogas e a de armamentos. Não é para elas o naco do leão dos dois negócios, cujos maiores mercados, aliás, ficam bem longe do Rio. Quando aparecem na televisão, os executivos das facções mostram o que realmente são – rebotalhos que vicejam porque há miséria demais, emprego de menos e perspectiva de vida nula.

Nem tudo é embuste e marketing na política de segurança. As UPPs, mesmo se eternizando em contêineres, levam jeito de que vieram para ficar. Elas são os alicerces da retomada de territórios – não bem para o Estado, e sim, para o capital. Continua a faltar Estado nas zonas “pacificadas”, mas a autoconstrução, que nelas dava a tônica, vem sendo substituída paulatinamente (e a pauladas) pelo mercado legal, que gera dividendos, impostos e caixa dois. No Vidigal, imóveis e aluguéis subiram de preço – processo que pode provocar a saída de quem mora no morro há décadas. É o que se chama de progresso.

A militarização também está com tudo. O pessoal que fazia passeata vestido de branco deu lugar a tropas permanentes, armadas até os dentes com o que há de bom e do melhor para matar. É a força-padrão do cenário internacional, de Bagdá a Cabul, e passando por Porto-Príncipe, onde o exército se exercita antes de ocupar favelas cariocas. Em cidades assim a democracia é um embaraço. É o que pensa o secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke. Ele disse na semana passada que com menos democracia se organiza melhor a Copa. Ato contínuo, enalteceu Vladimir Putin, o czar do Mundial seguinte ao do Rio. O de 2022 será no Catar, emirado absolutista aonde os direitos humanos não chegaram. Cidades de megaeventos precisam de paz e ordem, não de democracia. O estado de exceção deve ser permanente.

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Mario Sergio Conti é jornalista