Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A ‘arte’ de limitar a liberdade de informação

Os cidadãos do mundo inteiro testemunharam há alguns meses com espanto a revelação da existência de dois programas de vigilância em massa das comunicações por parte do Governo dos Estados Unidos. A justificativa do Governo norte-americano para tal violação do direito fundamental à privacidade pessoal e familiar era previsível: os programas são eficazes porque têm “impedido muitos ataques terroristas”. As autoridades nunca especificaram quais foram essas ações, o que obviamente provoca na sociedade uma sensação amarga que aumenta a sua incredulidade.

No entanto, é menos previsível a resposta que o Governo pode dar em relação ao caso de Edward Snowden, ex-agente da Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês) e suposto responsável por esse vazamento de informações.

Alguns desses documentos vazados indicam que a NSA e o Centro de Inteligência Britânico (GCHQ, na sigla em inglês) teriam espionado Julian Assange e o WikiLeaks. Neste caso, a definição foi um “ator estrangeiro maligno”, ou seja, foram considerados uma ameaça à segurança nacional. Tudo indica que o WikiLeaks foi espionado até o ponto de monitorar as entradas em sua página na Internet e adquirir os endereços de IP dos visitantes. Outros documentos descrevem as pressões exercidas pelos Estados Unidos aos países aliados para tratar Assange como um criminoso. Isto é, simplesmente, inaceitável em um país democrático que se orgulha de aplicar o Estado de direito.

O artigo 19.2 do Pacto das Nações Unidas de Direitos Civis e Políticos diz que “toda pessoa tem direito à liberdade de expressão; este direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de todos os tipos, independentemente de fronteiras, seja oralmente, por escrito ou em formato impresso ou artístico, ou através de qualquer outro meio de sua escolha”.

A guerra contra o terrorismo não pode incluir a vigilância dos jornalistas e dos meios de comunicação

Os mesmos direitos de natureza fundamental estão consagrados em outros textos regionais de proteção dos direitos humanos, tais como: o artigo 10 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH); o artigo 13 da Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos; e o artigo 9 da Carta Africana dos Direitos Humanos.

Seu exercício pode estar sujeito a restrições legais, que são consideradas necessárias para garantir o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; e para proteger a segurança nacional, a ordem pública ou a saúde ou a moral públicas. Mas, como quaisquer restrições, devem ser aplicadas rigorosamente.

Um fato de vital importância é que em todos estes textos jurídicos a liberdade de expressão e a liberdade de informação são reguladas em um mesmo artigo porque a primeira é base da segunda e porque aquela não pode ser exercida sem esta.

Ou seja, o acesso à informação é uma condição sine qua non para exercer, de forma plena, a liberdade de expressão e outros direitos. Se alguém não estiver informado, a sua opinião poderá ser válida, mas estará incompleta, ou, pelo menos, diferente daquela outra que expressaria após ter acesso às informações. E isso terá repercussões em outras áreas, tais como o exercício do direito ao voto.

Assim, o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas declarou que as liberdades de expressão e de informação são de extrema importância em qualquer sociedade democrática.

Esses direitos que, na teoria, são considerados tão enraizados nas sociedades democráticas ocidentais estão sujeitos a muitas tensões entre o Estado e os cidadãos. No geral, há uma tendência clara por parte de alguns Governos para limitá-los. Essa predisposição se baseia em uma interpretação ampla e muitas vezes contrária à lei das restrições legais que foram mencionadas.

Neste contexto, vários mecanismos são usados: o mais conhecido é a “guerra ao terrorismo”, com o qual justificam a suposta proteção da segurança nacional e a invasão sistemática dos direitos e liberdades dos cidadãos, dois argumentos usados contra Assange e o WikiLeaks.

Chega a ser paradoxal que tanto um como o outro estejam sendo tratados como uma ameaça, e não o que realmente são: um jornalista e um meio de comunicação no exercício do direito fundamental de receber e transmitir informações em estado puro, sem cortes, nem censura, sem interesses partidários, sem pressões econômicas, nem políticas. Talvez seja este sistema que cause medo e preocupação pela falta de controle que parece ter.

As autoridades tentaram evitar serem investigadas, não de proteger a sociedade contra Julian Assange

Um exemplo claro foi a publicação e distribuição do vídeo do ataque aéreo norte-americano que causou a morte de NamirNoor-Eldeen e de Saeed Chmagh, dois funcionários da agência de notícias Reuters no Iraque. A agência tentou sem sucesso obter o vídeo do ataque que, finalmente, foi divulgado pelo WikiLeaks, desmascarando a versão oficial do Pentágono ao provar que se tratou de uma ação contra civis.

A prática das autoridades americanas e britânicas de investigar e espionar Julian Assange, o WikiLeaks e seus funcionários não teria como objetivo, portanto, preservar a segurança nacional, nem proteger a sociedade contra uma ameaça, mas defender a eles próprios da possibilidade de serem investigados. Em suma, trata-se de proteger o Estado de seus cidadãos.

No processo contra o soldado Manning, o promotor afirmou, citando a obsoleta, porém vigente, Lei de Espionagem norte-americana que não há diferença alguma entre uma fonte que fornece informações para o WikiLeaks ou a outro meio de comunicação, como o The New York Times. Neste sentido, surge a pergunta: Por acaso também estamos diante de uma guerra contra a liberdade de expressão e de informação? Diante de uma espécie de tendência ou “arte” de limitar a liberdade de informação? Se for isso, e há indícios de que seja, estaríamos entrando em um pântano do qual será difícil sair ileso.

A resposta deve ser firme: a guerra contra o terrorismo não pode justificar de forma alguma o julgamento de quem publica práticas ilegais ou irregulares praticadas por aqueles que governam. Também não pode justificar políticas de vigilância que infringem os direitos fundamentais contra jornalistas ou meios de comunicação, nem, muito menos, seu julgamento criminal por exercer um direito fundamental próprio de uma sociedade democrática. Qualquer ação neste sentido deve ser investigada até suas últimas consequências e os autores, processados, uma vez que estão contradizendo o verdadeiro sentido do direito à informação e o acesso a ela, como evidenciado pelo relator especial para a Liberdade de Expressão e Informação, Frank Larue, em seu relatório à Assembleia-Geral da ONU de setembro de 2013.

Enquanto isso, em breve, Julian Assange completará dois anos como refugiado na Embaixada do Equador em Londres graças ao asilo político concedido pelo presidente Rafael Correa, sensível aos direitos humanos questionados e ciente do risco que o representante do WikiLeaks correria em mãos americanas. Correa enfrentou o poder mais forte do mundo ao tomar essa decisão, mas os meses passam entre o autismo britânico e a falta de resposta das autoridades judiciais suecas que violam flagrantemente os direitos de Assange, consumando uma agressão formal a um ser humano sem precedentes recentes.

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Baltasar Garzón é magistrado